Contempéries

Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2020

Por uma Alvorada

O ano mais marcante da contemporaneidade se aproxima do final. Em breve, os esforços retrospectivos se verão multiplicados. Relembrar cronologicamente os fatos ocorridos ao longo do ano é uma curiosidade arqueológica divertida. Mas, muito mais frutífero é pensar o espírito de nosso tempo, explorar as transformações que as estruturas da sociedade encerram, os movimentos do pêndulo ideológico e as atuais formas de interação com a realidade permitidas pelo momento tecnológico. São esses elementos que marcam o presente, e que oferecem condições prospectivas de porvir. Vivemos agora um momento histórico em que todos anseiam e almejam por um amanhã. Por uma alvorada.

Uma Brecha Transformadora

Em um célebre discurso na 68º Assembleia Geral da ONU1, em 2013, José Mujica, então presidente do Uruguai, se referia ao nosso tempo como a época mais portentosamente revolucionária que já se viu. Pepe muito provavelmente tinha em mente a capacidade de circulação de informações como elemento facilitador das transformações sociais. A mais valiosa das commodities agora trafegava de norte a sul, e de sul a norte, num piscar de olhos, e sem nenhum custo. Era questão de tempo até que a difusão de informação constituísse novas formas de consciência, e posteriormente de organização e transformação. Essa vague, porém, talvez já tenha se fechado. As informações circulam fluidamente, mas as fake news e as estruturas algorítmicas focalizadoras surgiram como elementos desarticuladores da formação de consciências. Sem uma capacidade prévia de interpretação crítica, o excesso de informações – entre falsas e verdadeiras – gera indivíduos desorientados e reféns dos canais alimentadores dos fluxos de informação.

A Pandemia, no entanto, chacoalhou as estruturas sociais e mentais da sociedade, e realimenta a percepção de que talvez estejamos presenciando o hiato entre a hecatombe e a emergência de uma nova ordem. Desde o final da Segunda Guerra Mundial a humanidade não experimentava algo tão catastrófico. São sete décadas e meia em que se construiu um senso de cotidiano sem interrupções abruptas relevantes. A pandemia reordena o sentido das prioridades. Recoloca a preservação da vida no topo, mesmo que isso implique – como de fato implicou – a paralisação da maioria das atividades. A ideia paulatinamente construída de que nossos trabalhos eram individualmente responsáveis pela sustentação da ordem social foi solapada pela realidade cruel de sentir-se inútil numa crise de proporções globais: isolar-se foi a melhor contribuição que a imensa maioria de nós pode oferecer ao coletivo. Ao mesmo tempo, apesar do grande impacto econômico que o fechamento nos impôs, as dificuldades de sobrevivência do ponto de vista do abastecimento foram muito menores do que se imaginava. A comida e demais víveres continuaram chegando aos mercados e a nossas casas. Mesmo o mais supérfluo dos bens ainda pode ser comprado e entregue em sua porta. No final das contas, não somos individualmente tão importantes assim.

A brecha surge exatamente como resultado dessa constatação. A humanidade trilhava a marcha cega da eficiência individual, tornando-se capataz de si mesma, e impedindo qualquer capacidade reflexiva de profundidade. Na sociedade do animal laborans2, fomos intoxicados pela positividade da eficiência, com a visão enturvecida demais pela urgência da concorrência para enxergar o propósito de nossas ações. O processo de alienação foi tão profundo e generalizado que alcançou as camadas mais elevadas dos gestores do sistema, e eles próprios tornaram-se escravos de sua própria eficiência. As endemias do nosso tempo tornaram-se, como resultado, as maladias psíquicas: síndrome de burnout, TDAH, depressão, transtorno do baixo desejo sexual, transtorno de personalidade limítrofe, consumo obsessivo… Somos uma sociedade generalizadamente doente e drogada, e os nomes excêntricos de antidepressivos já fazem, há algum tempo, parte do vocabulário das senhoras de terceira idade, mas também de casais desiludidos e de jovens desesperados.

A esperança é que a pausa representada pela Pandemia libertará muitos de nós desse auto-engalfinhamento. Ficou claro que é possível parar. E parados, pensamos melhor. Pensando melhor, agimos com mais inteligência e propósito, quando finalmente decidimos agir. A importância de ter tempo livre, de cultivar relações saudáveis com a família, de explorar impulsos artísticos, de ter amigos para além do espaço de trabalho, de exercitar atividades artesanais; tudo isso emerge com muita vitalidade. Os efeitos do choque representado pelo interregno pandêmico ainda são incertos, e se processarão por muitos anos, mas quase certamente serão transformadores. Resta saber como.

O Estado, sempre o Estado

Outro aspecto realçado pela Pandemia é a preponderância do Estado, e sobretudo sua capacidade de ação e resiliência. O Estado não só se responsabilizou pelo enfrentamento direto do vírus, mas garantiu condições para que o isolamento pudesse ser seguido, com pagamentos mensais da ordem de dezenas de bilhões de reais que alcançaram mais de 60 milhões de brasileiros. Tudo isso foi feito apesar da ladainha de que o dinheiro havia acabado, e que o Estado quebraria a qualquer momento. O auxílio continua a ser pago até o presente momento e os cerca de 400 bilhões injetados certamente diminuíram a profundidade da crise. Não fosse isso e possivelmente teríamos enfrentado ondas de saques a supermercados e estabelecimentos comerciais, desaguando numa situação de violência de proporções desconhecidas.

A crise forçou todos a voltarem-se para o Estado, como a um filho que se volta para a mãe quando não sabe como proceder. O curioso é que mesmo o mais empedernido dos neoliberais, diante da catástrofe, foi forçado a aceitar e ratificar gastos sociais em proporções nunca antes vistas na história brasileira. Tornou-se senso comum a necessidade do auxílio emergencial, e esse talvez seja um caminho sem volta. Ficou claro que é possível aliviar a miséria sem consequências desastrosas para a economia. Ao contrário, só diminuiu nosso tombo3.

Aceleração e Retorno do Pêndulo Ideológico

O movimento do pêndulo ideológico da última década parece ter sido, de maneira geral, para a extrema direita. Onde a social-democracia tradicionalmente reinava soberana, os partidos mais radicais de direita conseguiram importantes vitórias recentemente. Noruega, Suécia e Holanda surpreenderam o mundo com movimentos extremistas, ultraliberais e xenófobos em ascensão. No Brasil e nos EUA alcançaram o centro do poder executivo, ganharam posições importantes no congresso, e muitas têm sido as decisões e declarações escandalizantes no judiciário. Golpes proliferaram na América Latina, e a destituição violenta de presidentes voltou à cena. Esse movimento pode seguir por mais tempo, potencialmente alcançando o formato de ditaduras neoliberais testado no Chile de Pinochet.

Ao que parece, no entanto, a Pandemia acelerou o retorno do pêndulo. A fragilidade do individualismo e da ausência de percepção de coletividade ficou escancarada pelo contexto, e a extrema-direita tem sofrido importantes derrotas. Desde 1992 um presidente não era derrotado na tentativa de reeleição nos EUA, proeza conseguida por Donald Trump, mesmo contra um candidato amplamente considerado fraco. O pêndulo, agora, parece fazer o um movimento de retorno, da direita para o centro, e numa velocidade aumentada.

Nacionalismo sem Chauvinismo

Apesar do enfraquecimento da extrema-direita, o momento parece ser de fortalecimento do senso de nacionalidade. A xenofobia da última década é em grande parte motivada pela insatisfação com os rumos da globalização. O sistema de produção globalizada teve como impacto uma redução brutal da participação dos salários na renda total gerada, e um processo generalizado de destruição de empregos. O desemprego é uma endemia sistêmica, que afeta todo o ocidente, que deslocou as atividades produtivas para o sudeste oriental. Seja nos EUA, na Europa ou na América Latina, o desemprego é marca do século XXI, e afeta quase metade dos jovens do hemisfério, e os que se veem empregados, trabalham obsessivamente por muito pouco. Não surpreende a rejeição ao globalismo. Ainda que disforme, o repúdio se funda na percepção de que as oportunidades para as classes média e baixa encolheram abissalmente. O nacionalismo, nesse sentido, é uma reação quase automática.

A efeméride da Pandemia reforça essa tendência. A cessação em massa da circulação de pessoas entre países, e a busca por refúgios interioranos aceleraram a transição para uma tendência localista. O local, o regional e o nacional ganharam ainda mais força em meio à busca por segurança. Mas, ao que parece, o senso de solidariedade e da necessidade de cooperação desmobilizam os sentimentos chauvinistas. Uma pequena minoria insiste em apontar a China como culpada pela emergência do vírus, mas a solução da crise passará necessariamente por cooperações multilaterais, e a realidade tende a progressivamente se impor ao delírio. É tempo de cuidar de si, dos mais próximos, e do coletivo, em cooperação com qualquer potencial aliado.

No Brasil, em particular, a variante esquizofrênica do nacionalismo submisso e subserviente – que tem na continência prestada pelo presidente brasileiro à bandeira estadunidense4 e a John Bolton5 suas mais óbvias expressões – tende a desarticular-se. Os EUA portaram-se particularmente mal no decurso da crise, e deixaram de ser um exemplo óbvio a ser seguido. O fracasso moral de Donald Trump se converteu em derrota, e a adesão irrestrita do governo brasileiro agora soa como um claro equívoco, possivelmente irremediável. Talvez em breve já não vejamos mais as bandeiras dos EUA tremulando ostensivamente na Praça dos Três Poderes de Brasília, mesmo que os EUA ainda permaneçam por bastante tempo como centro do sistema geopolítico global.

Sobre a Linguagem

Do ponto da vista das ondas tecnológicas schumpeterianas, há indicativos de que estamos entrando na fase recessiva do ciclo da tecnologia da informação. Os efeitos dinâmicos da introdução dessas tecnologias estão se dispersando com a consolidação dos grandes conglomerados de cada ramo. A administração monopólica passará a aumentar a extração de renda dos consumidores e a diminuir a geração de postos de trabalho e possivelmente a taxa de introdução de inovações. Isso é preocupante, mas menos importante do que as transformações da linguagem, que exigem um esforço de interpretação genealógica que não cabe a este autor, e tampouco a este espaço.

De toda forma, a marca do nosso tempo parece ser a comunicação sintética, em poucos caracteres. A eficiência desse tipo de comunicação depende de um fluxo com poucos ruídos. Nesse contexto, a ironia – que sempre foi um instrumento de contestação do status quo – dificulta a transmissão de conteúdo, o que no fim das contas fortalece os núcleos de poder estabelecidos. A ironia foi incorporada pelo discurso oficial, que dialoga com os dois polos dos extratos de renda com registros distintos de uma mesma fala. Os sofisticados captam a ironia, os desprovidos admiram a falsa franqueza. O rei virou bufão, e para questioná-lo, agora, é preciso ser sincero. Sincero e claro, tanto quanto possível.

A revitalização da qualidade dos fluxos de informação é chave para a articulação de princípios comuns para a construção de uma eventual nova ordem. O cenário atual é de uma comunicação irônica, sugestiva e imagética, muito pouco assertiva, e proliferadora de frustrações: o cenário perfeito para o fortalecimento da tirania, que prefere reinar sobre os confusos, desorientados e inseguros. Ou bem a rearticulação se processa numa reinvenção da linguagem ou assistiremos a um progressivo agravamento da nossa condição de tragédia.

_________________________________________________________

2O conceito foi introduzido por Hanna Arendt, e é retomado por Byung-Chul Han em “Sociedade do Cansaço”.

3É curioso notar que os cerca de 400 bilhões de reais gastos com o auxílio possivelmente diminuíram o agravamento da relação dívida/PIB. A queda do PIB foi muito menor do que a inicialmente esperada, muito em razão do dinamismo que os recursos injetados geraram nas classes mais baixas. Em outras palavras, o efeito sobre o numerador parece ter sido muito menor do que o efeito sobre o denominador.

4Nos breves dias como militar fui ensinado a não prestar continência a nenhuma bandeira que não esteja ao lado da do pavilhão nacional, sob pena de estar cometendo um crime militar. O presidente não parece ter aprendido a mesma lição: https://www.youtube.com/watch?v=8M1dUtgFd0g

5Entre indivíduos, a continência é prestada por iniciativa dos subalternos aos superiores hierárquicos. O gesto do presidente brasileiro manifesta sua posição subalterna com relação ao conselheiro de segurança nacional dos EUA: https://www.youtube.com/watch?v=GI4lkiwB7ec

_______________________________________

Autor: Patrick Fontaine Reis de Araújo
Professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas
Currículo Lattes