Artigo: “O título está mais adiante” – Jackson Wilke da Cruz Souza

Adianto: não espero que este seja um texto de fácil digestão.

Você já deve ter ouvido o questionamento “falar isso é certo?”, especialmente nos últimos tempos, graças às organizações que promoveram movimentações no tecido social. Essa pergunta, na maioria das vezes, surge em situações comunicativas em que há pessoas de grupos minoritários presentes, as quais são procuradas nesses momentos para dar aval ao que é dito por alguém, provavelmente, não pertencente ao grupo minoritário.

Nessas situações é que tenho a certeza de que tudo é ideológico, e estou longe de ser exagerado nessa colocação. Mikhail Bakhtin, filósofo russo da linguagem, defendia que tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Segundo o autor, a ideologia influencia o pensamento, e não o contrário; sendo assim, é possível imprimir essa ideologia em ações que a represente e a signifique. Daí, então, dizer que o signo, aqui compreendido como. Podemos entender signo como algo que tenha um corpo material (como o som, por exemplo) e tenha significado: é diferente dizer mafagafo e mesa, em que este possui significado e aquele não, apesar de ambos possuírem um corpo material.

O autor ainda defende que o signo ideológico reflete e refrata a realidade de cada meio em que ele circula, o que pode resultar em uma distorção, ratificação ou apreensão da própria realidade a partir de um ponto de vista. Assim, aquilo que falamos e a forma como falamos representam, na verdade, maneiras diferentes de se colocar no mundo e compreendê-lo.

Voltando ao exemplo que abri neste texto, fica mais fácil compreender o porquê de algumas pessoas de determinadas esferas ideológicas, ao fazerem uso de certos signos, imprimem neles seus próprios posicionamentos e, ao se depararem com sujeitos de outras esferas, perguntam-lhes se pode ou não pode se referir a algo ou a alguém daquela maneira. Isso ocorre porque há uma disputa de significados. O signo ideológico é, então, arena. Nele se estabelecem guerras de grupos, que imprimem seus sentidos de opressão e repressão. Porém, o signo ideológico é resistência. Os sentidos são tomados e, muitas vezes, à força, para ressignificar e mudar os caminhos.

Por mais que não seja convencional, eis o título deste texto: “SHIIIU, A BIXA PRETA ESTÁ FALANDO!”. É exatamente aqui que quero que você reflita sobre esse título. Quantas vezes você já ouviu “bixa” e “preto/preta” sempre na tentativa de imprimir um pensamento negativo ou de repressão ao que esses signos representam no mundo.

O contexto social atualmente tem dado espaço a promoção de significados cada vez mais disfóricos sobre esses signos. E pior: a ocorrência deles em conjunto torna o que é dito ainda mais disfórico, pois somam-se a eles determinadas posições ideológicas.

Somos enxergados como “delírios comunista”, cada vez mais marginalizados e silenciados, “convidados” a ter comportamentos que deixam os outros mais confortáveis ao nos verem, ao nos presenciarem. Temos nossos corpos violados e tatuados até a alma com cicatrizes duras de curar. Somos jogados debaixo dos números e das estatísticas, pois, muitas vezes, nem somos vistos, porque nem sempre é seguro sair da invisibilidade respondendo a questionários ou a entrevistas.

Somos lembrados, sim, em um mês como este, na tentativa de trazer evidência sobre/para nós. São trinta dias; TRINTA DIAS que alguns param para lembrar da existência de uma bixa preta, ainda que para reprovar nossa presença nas capas de revistas ou campanhas publicitárias, por exemplo. Porém, esquecem-se de nós ao longo dos outros trezentos e trinta e cinco dias restantes, em que nos matam, nos batem, nos oprimem, nos “curam”. Esquecem-se que nós, bixas pretas, também somos administradores, economistas, cientistas contábeis, cozinheiros, artistas, professores. Somos tantas coisas, somos tanto; contudo somos “convidados” a ocupar o vazio de ser pouco ou ser nada.

Tomo aqui com força e à força bixa preta, signos ideológicos somando esforços ao que muitos de nós já vem fazendo por aí: ressignificando. Por meio da guerra nessa arena dos signos, somo-me ao movimento de estruturas, para vermos mais bixas pretas nas universidades, nos programas de tevê e nas propagandas, como quisermos e tivermos condições de estar ou ser, não somente em julho ou em novembro.

Termino aqui com dois adendos. Primeiro: bixa, não se sinta sozinha; procure nosso grupo DIVERGES, aqui na Unifal-MG; ainda que estejamos no começo, queremos fazer mais por nós. Segundo: retomo alguns versos da música Quebrada Queer, do grupo homônimo ao título da música, pois penso que cabem aqui, na arena dos signos.

Cê trombou com as bicha errada

E agora vai ter que escutar

Esse é só o primeiro desabafo que tá entrando pra história

E, com certeza, o meu pai não ia se orgulhar (…)

Trampando pesado, medindo um dia ser lendário

Não passo pano pra otário

E mesmo ameaçado, eu serei cada vez mais viado (…)


Obra consultada

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1995.

QUEBRADA QUEER. Quebrada Queer, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FwktAmgku68. Acesso em 07/06/2021.

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Publicado pela Diretoria de Comunicação Social – Texto original

Autor: Prof. Jackson Wilke da Cruz Souza
Professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)
Currículo Lattes