Juntos e misturados

Quem acreditaria na cena em que um bandido sanguinário, acordado pelo comparsa, refere-se à mãe deste como “senhora tida e havida por flor de bordel”, tal fosse um bacharel dos anos 50 metido a engraçadinho? Pois é assim em Terror e êxtase (1978), de José Carlos Oliveira, obra típica do veio que ficou conhecido como “romance-reportagem”, tendência dos anos 1970 cujo representante mais conhecido é José Louzeiro, autor de Pixote e Lúcio Flávio, o passageiro da Agonia.

O apelido do protagonista é 1001, gracejo relacionado ao fato de lhe faltarem os dentes incisivos centrais, defeito que depois ele remedeia com uma prótese de ouro. Em torno de suas façanhas e de seu caso amoroso com Heleninha é que gira o enredo. A garota, com 17 anos, é em tudo uma antítese de 1001, aliás Albertinho Limonta da Silva: loira e muito rica. Mas os dois se encontram pela inexplicável paixão que ela sente por um sujeito que jamais havia visto, tornando-se logo sua parceira no sexo e nas drogas, sem fazer qualquer reparo moral às atividades criminosas exercidas por ele.

Sendo uma jovem revoltada, Heleninha acha nojento tudo que advenha da riqueza de sua família. Igualmente, seu melhor amigo, Betinho: filho de um riquíssimo industrial, tentou ser jornalista, mas acabou entupido de drogas. Tal encontro aparentemente improvável entre os endinheirados e a escória social do Rio de Janeiro repercutirá, de muito modo esclarecedor, no desfecho do romance. Aguardemos.

A adolescente-problema, cujas veias não permitem mais o pico da heroína, segue o bandido e se mistura com a vida dele a ponto de continuar apaixonada mesmo apanhando e sendo humilhada. Os rumos da carreira do facínora apontam para um progresso que talvez lhe permitam realizar o antigo sonho: virar fazendo, levando para um fim de mundo qualquer sua preciosa loirinha, pela qual seus sentimentos são, no entanto, bastante ambíguos.

A técnica narrativa de Carlinhos de Oliveira, como o escritor capixaba gostava de se chamar, é bastante impura e desigual, mas isso não impede que sua condução do relato mantenha o leitor interessado. É verdade que a caracterização psicológica, especialmente do casal “romântico”, peca demais ao idealizar 1001 como capaz de arroubos sentimentais e, mais ainda, por não oferecer qualquer lastro crível à síndrome de Amélia que se apossa de Heleninha.

Assim também a linguagem, tanto dos narradores como dos personagens. O estilo do autor, que foi um bom cronista de jornal, carrega a narrativa num fluxo quase ininterrupto, mas seu aproveitamento da gíria dos viciados em drogas e da bandidagem – cuja intersecção, claro, não é de estranhar-se – uniformiza o registro das falas, de modo que quase todos se expressam um pouco como o hipotético bacharel supra referido, só que com baixo calão e expressões da moda enxertados, às vezes bem desajeitadamente.

As aventuras de 1001, sempre com a garota a tiracolo, prosseguem em direção a objetivos mais ambiciosos do que matar, a sangue-frio e sem necessidade, uma pobre burocrata solitária (é a cena que abre o livro). Logo ele reúne uma quadrilha capaz de assaltar um banco; agora é dinheiro grosso, muito mais substancial que o varejo das primeiras páginas. Portanto, 1001 já pode alojar-se com a namorada num bom apartamento e também passa a usar, além dos dentes postiços, uma peruca.

Enquanto isso, no núcleo Sílvio de Abreu (como mais tarde se diria), as fúteis famílias de Betinho e Heleninha tocam suas vidas elegantes e badaladas, não suspeitando que em breve precisarão sujar suas mãos tão bem tratadas na matéria bruta do real, onde existem despossuídos que fazem qualquer negócio para tornar-se também possuidores. É que 1001, informado pela garota de quão rico era o pai de Betinho, resolve sequestrar o “maconheiro piolhento” recém-egresso de uma quase-overdose de heroína. Então, a história se encaminha para o desfecho.

Neste, o bando de 1001 se dá mal, mas o protagonista, que havia sido destituído da chefia por um bandido mais competente, escapa com apenas um leve ferimento a bala. Agora, afivelando uma muito estranhável máscara de herói, ele declara que está em guerra contra toda a população do Rio de Janeiro. Interessante esse protótipo da glorificação nacional da bandidagem, que, capitaneada pela Rede Globo – um de cujos patronos, desde sempre, foi o Jorge Amado de Capitães da areia –, ajuda um pouco a explicar o estado de miséria moral que, paralelamente à perversão econômica, levou o Brasil ao paradeiro em que se encontra.

E, por último, mas não menos, a solução do sequestro de Betinho se dá por meio dos laços de amizade que existem entre o pai deste, “ilustre” empresário, e o mesmo chefão da bandidagem que era o ilustre receptador de tudo o que 1001 roubava. Como disse certo subversivo personagem da Bíblia, quem tiver ouvidos para ouvir, ouça.

 

Título: Terror e Êxtase
Autor: José Carlos Oliveira
Gênero: Romance
Páginas: 128
Ano da edição: 2005
ISBN: 9788500018534
Selo: Ediouro-RJ

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.