Reformulação na Lei de Cotas do Ensino Superior: gestor da área de Processos Seletivos da Universidade avalia as mudanças propostas e seus reflexos na inclusão

No dia 9 de agosto, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 5.384/2020, que faz ajustes à Lei 12.711/2012, a qual estabelece a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas nas universidades federais. O PL segue agora para o Senado Federal. A aprovação do texto desencadeou uma série de debates sobre as modificações na Lei de Cotas.

Para entender melhor o que o texto aprovado na Câmara traz de avanços, a equipe de comunicação conversou com o servidor Geraldo Liska, gestor da Diretoria de Processos Seletivos (Dips) da UNIFAL-MG, setor responsável pela organização dos concursos públicos e processos seletivos da Universidade, que também coordena as comissões relativas às ações afirmativas e de análise socioeconômica referente às cotas por renda de candidatos.

Na entrevista, o diretor apresenta uma análise detalhada das principais alterações propostas pelo projeto, explorando os impactos esperados na composição socioeconômica das instituições de ensino superior, as implicações para a assistência estudantil e a dinâmica de ocupação de vagas. Geraldo Liska comenta as mudanças propostas e avalia a importância do monitoramento contínuo, bem como os desafios que ainda precisam ser enfrentados para garantir a inclusão e diversidade no ambiente acadêmico.

Confira a seguir:


Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5.384/2020, que modifica a Lei de Cotas no Ensino Superior (12.711/12). Quais foram as principais alterações propostas?

Segundo o diretor da Dips, a reformulação proposta prevê que o Poder Executivo revise o programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior. (Foto: Ana Carolina Araújo/Dicom)

Geraldo Liska: O projeto de lei tenta tornar permanente a política de cotas para o ingresso de pessoas pretas, pardas, indígenas, pessoas com deficiência e alunos de escolas públicas em instituições federais de ensino. Na verdade, não há um grande avanço em si, uma vez que a Lei 12.711/12 já previa isso, com suas alterações. O intuito do projeto de lei é extinguir a revisão citada no Art. 7º. O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior.

Além disso, as principais mudanças são a redução de 1,5 salário-mínimo para 1 salário da comprovação de renda das vagas destinadas para pessoas com vulnerabilidade socioeconômica, inclusão de estudantes quilombolas, a concorrência dos cotistas tanto nas listas de ampla concorrência como na de vagas reservadas (prevalecendo aquele em que estiver com melhor classificação) e a prioridade para receber bolsa de permanência do MEC e outros tipos de auxílios estudantis.

O projeto atualmente está aguardando envio ao Senado Federal e pode ser acompanhado em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2266069 

Como gestor da Diretoria de Processos Seletivos da Universidade, como você avalia o impacto dessas mudanças no âmbito da UNIFAL-MG?

Geraldo Liska: O que digo aqui não digo apenas como atual gestor da Dips, mas também pela atuação junto à Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace) desde 2018 e também na Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) desde 2015. Vemos cada vez mais uma universidade “colorida”. O que é importante, como já defendi em uma gravação no projeto “A Voz da Ciência”, é reafirmar que a política continua tratando somente de questões sobre ingresso na universidade, mas ela não discute com mais afinco a permanência. Isso teria que ser revisto inclusive no aumento de repasses do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). Trata-se de um processo muito importante que deve ser discutido sem desassociar nenhum dos três: ingresso, permanência e conclusão (com acompanhamento de egressos).

“As principais mudanças são a redução de 1,5 salário-mínimo e meio para 1 salário da comprovação de renda das vagas destinadas para pessoas com vulnerabilidade socioeconômica, inclusão de estudantes quilombolas, a concorrência dos cotistas tanto nas listas de ampla concorrência como na de vagas reservadas (prevalecendo aquele em que estiver com melhor classificação) e a prioridade para receber bolsa de permanência do MEC e outros tipos de auxílios estudantis.”

De que forma a mudança na redução da renda familiar exigida para metade das vagas cotistas pode afetar a composição socioeconômica dos estudantes nas instituições de ensino superior?

Geraldo Liska: Caso a proposta seja aprovada, a comprovação da renda familiar máxima será de 1 salário mínimo por pessoa, que hoje corresponde a R$ 1.320. Na lei atual, vale 1 salário mínimo e meio de renda per capita. Isso não apenas agregará ao ingresso no Ensino Superior, como também terá impacto nas políticas de assistência prioritária da Universidade.

Em relação à prioridade no acesso à assistência estudantil para os alunos cotistas, quais modalidades de auxílios estudantis você acredita que serão mais relevantes para apoiar esses estudantes e garantir sua permanência e sucesso acadêmico na UNIFAL-MG?

Geraldo Liska: Com certeza, deverá haver mudanças no Programa de Assistência Prioritária da UNIFAL-MG, sobretudo para abranger esses novos estudantes. A proposta prevê um programa especial garantindo o serviço de assistência estudantil para aqueles estudantes que assim o necessitarem para a realização e conclusão de seu curso. Acredito que nenhuma universidade vê óbice na criação e no aumento dos atendidos em programas que já existem com esse fim, basta que sejam destinados recursos pelo Governo. 

O Programa de Assistência Prioritária da Prace (Resolução CAE nº01/2023), por exemplo, segue a filosofia do Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES, com intuito de democratizar as condições de permanência, minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão, reduzir as taxas de retenção e evasão e contribuir para a promoção da inclusão social pela educação.

Como você avalia a alteração no critério de preenchimento de cotas, em que os candidatos cotistas também concorrerão às vagas da ampla concorrência? De que forma essa mudança afetará a dinâmica de procura por vagas nas instituições de ensino superior?

Na avaliação de Geraldo Liska, a revisão da lei é importante quando há diálogo amplo e inclusivo com a sociedade. (Foto: Ana Carolina Araújo/Dicom)

Geraldo Liska: O critério de preenchimento das vagas reservadas também concorrendo às vagas de ampla concorrência já é adotado nos concursos e processos seletivos, então no caso de ingressantes para o ensino superior não será diferente disso. Aquelas vagas que são reservadas terão prioridade de ocupação, de modo que, não preenchendo, serão destinadas às demais modalidades de ocupação como tem acontecido.

Com as ações afirmativas agora sendo de responsabilidade das instituições, como você acha que essa flexibilidade pode impactar a efetividade dessas ações e garantir a inclusão de grupos historicamente marginalizados?

Geraldo Liska: A flexibilização é importante, mas também temos que ter ciência das políticas internas e como elas têm sido realizadas. O servidor Julio Cesar Barbosa, em sua dissertação Análise da implementação da política de cotas, com critérios raciais: a experiência da Universidade Federal de Alfenas, já apontava a necessidade cada vez mais de fortalecer o acompanhamento dessas políticas, muito antes do projeto de lei agora em vigor.

O monitoramento contínuo da política de cotas é uma parte essencial das mudanças. Como você enxerga esse monitoramento contribuindo para garantir que os objetivos de diversidade e inclusão sejam alcançados ao longo do tempo?

Geraldo Liska: Existe o Observatório de Monitoramento (OPEM) da UNIFAL-MG, comissão permanente multidisciplinar de assessoramento da Prace para o monitoramento do perfil discente e das políticas para a permanência e sucesso acadêmico dos discentes. Acredito que esse núcleo possa contribuir bastante para verificar como tem sido a ocupação de vagas na Universidade.

Acredito que a preocupação do projeto de lei está longe de contribuir, de fato, com a permanência, a inclusão e diversidade, a capacidade do sistema legal e educacional de se adaptar às mudanças na sociedade e às demandas de grupos historicamente marginalizados.”

Considerando a evolução da sociedade e a diversificação das identidades, você acha que a lei proposta é abrangente o suficiente para lidar com futuras necessidades de inclusão e diversidade? Quais são os principais desafios que você antecipa na implementação e adaptação dessas novas políticas?

Geraldo Liska: Acredito que a preocupação do projeto de lei está longe de contribuir, de fato, com a permanência, a inclusão e diversidade, a capacidade do sistema legal e educacional de se adaptar às mudanças na sociedade e às demandas de grupos historicamente marginalizados. Como eu trato desde o começo da entrevista, há muita preocupação sobre ingresso, mas poucos esforços sobre a permanência dos estudantes. A revisão da Lei atual é importante quando há diálogo amplo e inclusivo com a sociedade, ouvindo opiniões e considerando diferentes perspectivas sobre a política de cotas e seu impacto, inclusive na tentativa de identificar eventuais problemas ou lacunas, como estou demonstrando agora. Caso contrário, será mais uma nova lei sujeita a revisões em breve.