Igualdade de gênero nas capas de livros infantis do selo editorial Boitatá: um olhar multimodal

Flaviane Faria Carvalho¹
Jaíne Reis Martins²

Nos últimos anos, o mercado editorial e a sala de aula têm se modificado em relação às discussões atuais em nossa sociedade. Nesse contexto, destacam-se questões de gênero, raça, bem como da representatividade feminina em diferentes espaços. Neste sentido, esta pesquisa objetiva analisar a representação feminina e a igualdade de gênero em capas de quatro obras infantis publicadas pela Boitatá, selo infantil da Boitempo Editora, a partir dos recursos da Semiótica Social Multimodal (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996) que entende a linguagem como um sistema semiótico de escolhas e não se restringe apenas ao modo semiótico linguístico, mas a outros modos semióticos, como o visual.

O estudo se debruça sobre a análise de quatro capas de livros publicados pela Boitatá, quais sejam: As mulheres e os homens (2016), Pode pegar! (2017), Lute como uma princesa (2019) e Julián é uma sereia (2021) – todos ilustrados por mulheres.

Quanto às categorias de análise, adotou-se as metafunções visuais propostas pela Gramática do Design Visual, precisamente os significados representacionais, interativos e composicionais. Os principais resultados do estudo apontam para a transgressão de padrões imagéticos machistas de representação de meninas e mulheres, bem como para a necessidade do olhar de docentes para obras que tragam a representatividade feminina de forma inclusiva e diversificada.

Na capa do livro As Mulheres e os Homens, um homem e uma mulher são mostrados em plano geral de mãos dadas, rostos próximos, trajando uma vestimenta que, supostamente, contrariaria padrões tradicionalmente estabelecidos em nossa cultura para os gêneros masculino e feminino: aquele, usando vestido e lenço no pescoço; esta, terno e gravata. Trata-se de uma estrutura narrativa transacional bidirecional, ou seja, homem e mulher são apresentados como elementos centrais da página, ao mesmo tempo, como Ator e Meta, em relação de igualdade e como informação principal e mais saliente. A comunhão e a igualdade entre ambos se dá, ainda, pela rima visual das cores branca, vermelha e preta, presentes em suas roupas – escapando, portanto, da dicotomia azul para meninos e rosa para meninas –, bem como por estarem de pé, com braços em posições parecidas, frontalmente olhando e sorrindo para o leitor, demandando dele engajamento com a causa e com ele construindo uma relação de envolvimento e despida de qualquer assimetria de poder.

Em relação ao título, cumpre salientar a topicalização verbal do léxico “mulheres”, ao passo que na imagem, o homem aparece em primeiro lugar, à esquerda, e vice-versa, reforçando a ideia de bidirecionalidade dos papéis sociais de ambos os gêneros. Quanto à tipografia, a escolha de uma fonte serifada, em caixa alta, regular, dotada de inclinação e orientação vertical, remete a uma identidade associada à proatividade, à altivez, à robusteza, à persistência, o que parece fortalecer a luta pela igualdade de gênero e combater pensamentos sexistas presentes em nossa sociedade.

Já a capa do livro Pode Pegar! apresenta uma coelha jogando seus sapatinhos para um coelho. Trata-se de uma estrutura narrativa, precisamente uma ação transacional unidirecional, em que a coelha é Agente do processo, e o coelho, a Meta, o participante alvo da ação, que recebe os sapatos – apresentando, desse modo, a figura masculina numa posição de subserviência em relação à figura feminina, representada como agente, dotada de poder de transformação sobre ele.
Cabe assinalar, inclusive, que o título da obra parece complementar a representação visual, já que pode ser compreendido como a fala da coelha para o coelho: “Pode pegar!” [os meus sapatinhos de salto]. Por outro lado, em termos de tipografia, é feita uma associação com coelho, já que há uma rima visual construída em função da cor azul presente tanto no título como no colete do coelho. Ademais, a presença de uma fonte em caixa alta, sem serifas, com inclinação e orientação verticais, sugerem a força, a importância e o poder do enunciado supostamente proferido pela coelha.

Por meio de um plano geral e de um ângulo oblíquo, o coelho, que usa um colete azul é mostrado à esquerda; a coelha, que usa saia rosa, à direita, ambos sem estabelecer contato visual com os leitores. Desse modo, a interação entre os participantes representados é que figura como objeto de nossa contemplação, sendo que a ação praticada pela coelha é que aparece como informação nova, provavelmente contestadora dos valores sociais dados, tradicionalmente consolidados, ao oferecer seus sapatos para o coelho. Dessa maneira, temos a impressão de que a dicotomia rosa associado ao gênero feminino versus azul associado ao gênero masculino aparece constantemente em jogo na representação, sugerindo que ambas as cores “podem” ser usadas independentemente do nosso gênero.

Em se tratando da capa do livro Lute como uma princesa, as personagens Bela e Branca de Neve posam de uma maneira diferente da que tradicionalmente conhecemos nos contos de fadas. Localizadas como elementos centrais da capa e encostadas de pé em uma árvore, Bela aparece com o cabelo preso por um laço verde, usando uma jaqueta policial com o brasão “Polícia do Reino” sobre um vestido amarelo, segurando uma rosa vermelha em posição invertida, com uma das pétalas a cair. Branca de Neve, por sua vez, usa calça jeans, uma blusa verde com detalhes em amarelo e vermelho, e está comendo uma maçã vermelha.

Trata-se de uma estrutura conceitual simbólica, na qual os atributos, as vestimentas e a postura adotadas pelas participantes cumprem a função de representá-las com uma nova identidade: a de mulheres associadas tanto ao universo do trabalho, como à luta contra a sociedade conservadora.

Ambas as personagens são apresentadas como tendo o controle sobre os elementos simbólicos que tradicionalmente associados à maldição: a rosa e a maçã. Em termos de vestimenta, ambas usam jeans.

Quanto ao título, destacado em tonalidade dourada, podemos observar a fusão entre valores tradicionais e valores progressistas: por um lado, o estilo clássico, caligráfico e feminino vinculado ao léxico “princesa”, por outro, o estilo moderno, funcional, industrial do termo em caixa alta “Lute como”

Na capa da obra Julián é uma sereia, por seu turno, o protagonista figura individualizado, em plano geral, aparentemente na calçada de uma rua, com lábios pintados de vermelho, trajando uma espécie de saia branca comprida e um arranjo de flores na cabeça, com uma das mãos na cintura e outra posicionada para , cuja gênese se vincula historicamente a uma peça utilizada pelos jovens como símbolo de resistência contra a sociedade conservadora cima. Trata-se de uma estrutura conceitual simbólica, em que a postura e os atributos associados ao protagonista cumprem a função de reforçar a sua identidade.

Ou seja, um menino que se veste altivamente como menina, mas que ultrapassa as dicotomias azul, figurada no chão onde pisa e rosa, presente nos muros atrás dele. Tal representação parece evocar significados de paz e pureza, em virtude da cor branca usada por ele como vestimenta que, inclusive, é também empregada nas cores do título, reforçando essa sua identidade.

Assim como na obra As Mulheres e os Homens, foram adotadas escolhas tipográficas providas de fonte serifada, em caixa alta, regular, com inclinação e orientação vertical, bem como uma espécie de floreio na letra S, remetendo a uma identidade associada, ao requinte, à elegância, a um toque de feminilidade e ao empoderamento, na tentativa de estabelecer outras representações possíveis de gênero em nossa sociedade.

Os principais resultados deste estudo apontam para a transgressão de padrões imagéticos machistas de representação de crianças, homens e mulheres; para a promoção da independência por parte das crianças leitoras em relação às escolhas feitas por elas; bem como para a necessidade do olhar de docentes para obras que abordem a representação da diversidade de gênero de forma mais inclusiva e plural.

Concluímos, assim, que as obras analisadas e comercializadas pela Boitempo Editora, além de cumprir com as ideias defendidas pela casa editorial, permitem abordar a igualdade de gênero por meio de diferentes recursos semióticos visuais – sejam eles subversivos em relação às desigualdades de gênero, sejam fomentadores de empoderamento. Dessa forma, por meio da utilização destas obras em sala de aula, é possível que haja a reformulação tanto do que se entende por gênero como das práticas simbólicas em relação aos papéis de gênero impostos socialmente às crianças.

Destarte, os docentes conseguiriam explorar, por meio de análises discursivas e multissemióticas, as diferentes construções de gênero existentes na sociedade, bem como permitir que os discentes tenham acesso a diferentes discursos e valores a respeito da temática, contribuindo para a autonomia, o pensamento crítico e a construção de um senso de justiça social nos pequenos.

*Artigo originalmente publicado no volume 23 da revista Global Journal of HUMAN-SOCIAL SCIENCE: G Linguistics & Education, com o título ” Gender Equality on the Label’s Children’s Book Covers Boitatá Editorial: A Multimodal Look”, disponível para acesso neste link.


Referências

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Referências


Flaviane Faria Carvalho
Flaviane Faria Carvalho é professora do curso de Letras do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. É doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa (2012), mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG. Tem experiência nas áreas de Linguística Aplicada e Comunicação Social, atuando principalmente nos seguintes temas: semiótica social, multimodalidade, análise crítica do discurso, multiletramentos, gêneros textuais, escrita acadêmica, roteiro e produção de documentário, editoração e assessoria de comunicação. É membro do Grupo de Pesquisas Linguísticas Descritivas, Teóricas e Aplicadas (GPLin/UNIFAL-MG), do Laboratório de Estudos Críticos do Discurso (LabEC/UnB) e do Grupo de Estudos em Multiletramentos, Leitura e Textos (GEMULTE/UFES).


Jaíne Reis Martins
Jaíne Reis Martins é colaboradora assistente da Diretoria de Comunicação Social (Dicom) da UNIFAL-MG e docente de Redação para o ENEM pelo Programa Cidade Escola, realizado pela Prefeitura de Alfenas. É graduada em Letras pela Universidade Federal de Alfenas e especializanda em Psicopedagogia pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Tem formação em Canto pelo Centro Municipal de Música Professora Municipal Walda Tiso Veiga. Atuou como professora designada na Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais e como redatora no jornal Folha Areadense de Areado – MG. Durante a graduação, foi bolsista no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Também trabalhou como revisora na editora Nova Concursos e como analista de Mídia Social na Diretoria de Comunicação Social (Dicom) da UNIFAL-MG.


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