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Interrogar o cuidado: reprodução social nas encruzilhadas do capital

Cínthya Bastos Ferreira¹

O engendramento de uma situação de dependência para com o trabalho assalariado é fruto de coações, diretas e/ou indiretas, da “assim chamada acumulação primitiva”, que coloca em marcha o desenraizamento massivo do campesinato de sua base material de produção e reprodução, sendo este um aspecto fulcral para o desenvolvimento do capitalismo enquanto sociabilidade baseada 1) na propriedade privada dos meios de produção, 2) na divisão social do trabalho e 3) na existência de classes sociais distintas e em última instância irreconciliáveis.

Os processos que desaguaram na despossessão da classe que vive do trabalho caracterizam-se por uma bifurcação essencial ente os espaços de produção e aqueles voltados especificamente à reprodução social no âmbito da família nuclear ora ascendente. Em outros termos, a divisão sexual do trabalho se estabelece, produzindo junto a si uma feminização do trabalho doméstico e de cuidado, no momento preciso em que economia de subsistência, pré- capitalista e ancorada em uma unidade (produção e reprodução) é substituída pela primazia da monetização. Nestes meandros, os trabalhos feminilizados e não-pagos, bem como seus sujeitos, se situam de modo subordinado ante aos trabalhos e aos sujeitos que auferem remunerações em espécie.

Somado a isso, nesta disposição, o trabalho reprodutivo e tipicamente feminino é, do ponto de vista do capital e de sua economia política, improdutivo, uma vez que não gera, por si só, valorização do valor. Contudo, vale ressaltar, a categoria de trabalho improdutivo, nos termos aqui empregados, não é uma categoria moral, mas uma categoria material. Ademais, este trabalho é indispensável para acumulação capitalista, visto que propicia a manutenção da existência da principal e basilar mercadoria, entre tantas, do processo produtivo capitalista, isto é, a força de trabalho e sua capacidade de dispender energia física e psíquica na produção de mercadorias outras que não lhe pertencerão.

Por isso, entre outras coisas, ao se dizer de força de trabalho, se evoca também uma transformação do corpo em maquinaria, em acessório do qual se dispõe a classe proprietária e da qual se extrai o trabalho vivo tornado abstrato, única fonte de valor (de troca). O corpo torna-se receptáculo de investimentos subjetivos, psicofármacos e outros, a fim de obter uma performance adaptada às demandas sociais em transformação. E aqui se encontra a dualidade e ambiguidade da reprodução social: ela viabiliza o substrato historicamente variável de manutenção da vida, que é condição sine-qua-non da acumulação capitalista em suas diversas facetas organizacionais, mas ela não produz, não diretamente, mais-valor.

Como aponta Bhattachyarya (2023, p. 19), se a economia formal é o local de produção de bens e serviços, as pessoas que produzem tais bens e serviços são, elas próprias, produzidas fora do âmbito dessa economia formal, em uma entidade baseada em relações de parentesco chamada família. Por isso, a um só tempo “externa” e indissociável do trabalho produtivo, a reprodução social é marcada pela invisibilização e pala naturalização, revelando a simultaneidade da exploração e da opressão, em suas múltiplas formas (racial, generificada, etária, etc.) sob o jugo do capital.

Traçadas estas considerações iniciais, tem-se que na contemporaneidade é recorrente a menção à “crise do cuidado”, em particular, com a tendência ao envelhecimento acelerado das populações dos países centrais industrializados e com o advento e com as reverberações da pandemia de Covid-19, como demonstra Hirata (2022). Mas quais contornos tem essa crise, quais seriam suas determinações e a que necessidades não sanadas, ou em defasagem, se referem? Partindo deste último ponto, parece haver um esgotamento na capacidade social de cuidado das casas, das comunidades e das pessoas com as quais nos relacionamos. São demandas que implicam inúmeras atividades, de vários teores, que conjuga o físico e o emocional, o técnico e o relacional.

Ao contrário de um desequilíbrio supostamente individual no manejo entre trabalho remunerado fora do âmbito doméstico e trabalho no seio das relações familiares e afetivas, esta crise aponta para contradições estruturais da sociedade. A crise do cuidado não pode ser compreendida sem levar em conta a dimensão política, econômica e cultural mais ampla em que se inscreve e em que é inscrita, uma vez que não se trata de um fator independente ou isolado, mas de uma manifestação singular da totalidade social em movimento. E, a esse respeito, torna-se relevante enfatizar as dinâmicas diferenciais do cuidado em períodos distintos da acumulação capitalista.

Resguardos os contrastes notáveis entre periferia e centro, durante a vigência do Welfare State no terreno político, do keynesianismo no terreno econômico e do fordismo no terreno organizacional, que sinalizou, por um lado, um compromisso momentâneo entre capital e trabalho e, por outro lado, um avanço na organização da classe trabalhadora e no seu poder relativo de barganha, o cuidado foi parcialmente socializado com a criação de políticas sociais e assistenciais: creches, lavanderias públicas, direito à escola e a serviços médicos gratuitos, programas de transferência de renda, etc. De modo genérico, há um amortecimento, para as famílias, dos trabalhos relativos à reprodução social, pois seus custos passam a ser assumidos pelo Estado.

Desde os fins da década de 1970, o capitalismo vive uma mutação e se assenta em novas bases, que combinam a política neoliberal, a austeridade econômica, a financeirização e a precarização do trabalho via desmonte de direitos outrora conquistados. Assiste-se a uma ofensiva do capital no intuito de recuperar suas taxas de lucro e de garantir sua continuidade enquanto sistema. Como frisam Fraser e Sousa Filho (2020), enquanto o regime anterior subordinava os interesses de curto prazo das empresas privadas ao objetivo de longo prazo da acumulação sustentada, função que era cumprida ao estabilizarem a reprodução por meio do provimento público, o presente regime autoriza o capital financeiro a disciplinar os Estados em prol do interesse imediato dos investidores privados, incluindo, nesse sentido, a retirada de investimentos públicos na reprodução social.

Embora na contemporaneidade se evidencie as problemáticas relativas ao cuidado, inclusive acionando mecanismos em que mulheres vivenciam jornadas duplas e triplas de trabalho (muitas vezes mesclando trabalho assalariado e não assalariado) e/ou transferem para mulheres em situação ainda mais vulnerável as tarefas reprodutivas de seu próprio lar, a crise do cuidado não se restringe ao capitalismo em sua forma história financeirizada e neoliberal. A crise do cuidado é fruto da sociedade capitalista como tal, isto é, liga-se aos seus fundamentos. Como argumenta Fraser (2023, p. 47), “de um lado, a reprodução social é uma condição de possibilidade da acumulação de capital continuada; de outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social dos quais ele depende”.

Dessa forma, não há solução para a chamada “crise do cuidado” que não passe pela revisão, pela crítica e pela transformação radical da organização da vida coletiva; que não passe pela revisão, pela crítica e pela transformação radical das relações sociais de classe, gênero e raça, que na contemporaneidade, tal qual se manifestam, edificam cadeias globais de cuidado portadoras de relações de poder desiguais, cujas ocupações menos valorizadas social e economicamente são atribuídas a mulheres racializadas, empobrecidas e de regiões periféricas. Por isso, a crise do cuidado é uma crise do capitalismo e a crise do capitalismo engendra continuamente uma crise do cuidado, que está intimamente associada às possibilidades díspares de dispor da própria temporalidade, de usufruir dos territórios e de criar conexões humanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BHATTACHARYA, Tithi (org.). Teoria da reprodução social: remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Elefante, 2023.

FRASER, Nancy; SOUSA FILHO, José Ivan Rodrigues de. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), [S. l.], v. 27, n. 53, p. 261–288, 2020.

FRASER, Nancy. Crise do cuidado? Sobre as contradições sociorreprodutivas do capitalismo contemporâneo. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Teoria da reprodução social: remapear a classe, recentralizar a opressão. São Paulo: Elefante, 2023.

HIRATA, Helena. Cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo, 2022.


Cínthya Bastos Ferreira é egressa do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da UNIFAL-MG. É graduada também em Psicologia pela PUC-MG, tendo atuado como monitora da disciplina Epistemologia da Psicologia, além de realizar estágios formativos no âmbito da educação e da saúde pública. Na UNIFAL-MG, foi bolsista nos programas de ensino Residência Pedagógica e Pibid; extensionista no projeto Observatório da Democracia, e desenvolveu pesquisas acerca da temática da prostituição e suas interfaces interseccionais, pelo Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC). Atualmente é membra do Grupo de Estudos sobre Trabalho e Tecnologia (GETT) da Instituição. Suas áreas de interesse são: estudos feministas, prostituição, sociologia do trabalho, psicologia social crítica, educação e ensino de sociologia, teoria marxista da dependência.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).