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Uma fábula e dois prefácios

Sem ser, do ponto de vista estritamente literário, um grande livro (e seu autor sabia disso), A revolução dos bichos (1946) conquistou lugar indiscutível como clássico da literatura moderna. Chegou a ser incluído pela revista estadunidense Time numa lista dos 100 melhores romances de língua inglesa. Mas isso de listas e eleições, em literatura, nunca é para ser levado tão a sério.

Para começar, essa fábula moderna do britânico George Orwell não apresenta o refinamento psicológico ou a técnica narrativa da sua obra-prima, 1984, que foi publicada pela primeira vez em 1949. Os dois livros criticam o totalitarismo, mas o primeiro deles pode ser considerado uma espécie de esboço do profundo estudo que Orwell conseguiria fazer no segundo. Em tempo: é fútil discutir o conceito sem ter lido o monumental As origens do totalitarismo (1951), em que Hannah Arendt demonstra como ele dificilmente poderia ser estendido a outros sistemas que não o nazismo e o stalinismo.

O destaque de A revolução dos bichos resulta em grande parte da simplicidade. A narrativa transforma uma imaginária fazenda inglesa em paródia da Revolução Russa. Tudo começa quando o velho porco Major – dizem que esse é o mais inteligente dos animais – faz, à beira da morte, um discurso contra a exploração dos animais pelos seres humanos. O sábio suíno logo encerrará seus dias, mas a conscientização iniciada por ele resulta numa insurreição em que os bichos conseguem expulsar da Granja do Solar o proprietário, Mr. Jones; a partir daí, iniciam um processo de autogestão que promete menos trabalho e mais alimentos, mais liberdade e o fim da opressão.

Orwell deixou claro seu propósito de denunciar o que ele chamava “mito soviético”. Ele nunca esteve na Rússia, mas compreendeu bem o que era o stalinismo quando lutou na Espanha ao lado dos revolucionários locais. É fácil reconhecer Stálin sob a camada de toucinho do porco Napoleão, que já nos primeiros momentos da revolução dos bichos começa a abusar do seu papel de líder. A partir daí, a narrativa consiste numa descrição esquemática da maneira como o movimento revolucionário degenera em tirania, com destaque para a esperteza de Napoleão em adestrar cachorrinhos, os quais mais tarde funcionarão como seu exército pessoal, sufocando qualquer questionamento de suas ações. Os porcos, desde o princípio, adquirem privilégios; um deles, apropriadamente chamado Garganta, faz o papel de propagandista do regime, justificando todas as ações de Napoleão – seu “trabalho” inclui a distorção deliberada dos fatos e a falsificação de estatísticas. Muito interessante: Orwell, entre outras finas observações, notou que o uso de eufemismos é característico dos regimes ditatoriais.

Tudo corria oficialmente no melhor dos mundos, só que, cada vez mais, a casta privilegiada aumentava sua cota de luxos e os outros animais trabalhavam ainda mais do que nos tempos da escravidão que dera motivo à revolta. No final, os privilegiados porcos já tomam uísque com os homens (leia-se, países capitalistas), os quais haviam sido, a princípio, destinatários de todo o ódio revolucionário. Então, numa noite os outros bichos espiam pela janela da antiga casa de Mr. Jones e percebem que, lá dentro, “já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.

A fábula tem graça em si mesma, porém fica melhor compreendida se a edição do livro trouxer os dois prefácios que Orwell escreveu para ela. O primeiro deles se intitula “A liberdade de impressão”; nele, o autor relata as diversas censuras sofridas pelo livro numa época em que, devido à participação dos russos na Segunda Guerra, o governo inglês não tinha interesse de desagradar a Stálin. Apesar de o contexto ser tão específico, a reflexão continua tendo uma atualidade contundente:

Em qualquer momento dado, existe uma ortodoxia, um corpo de ideias que,

supostamente, todas as pessoas bem-pensantes aceitarão sem questionar. Não é

exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas dizê-lo é uma coisa que “não se faz”,

assim como na era vitoriana falar de roupas de baixo na presença de uma senhora

era coisa que “não se fazia”. Qualquer um que desafie a ortodoxia predominante se

vê silenciado com uma eficácia surpreendente. Uma opinião genuinamente destoante

quase nunca recebe a atenção devida, nem na imprensa popular nem nos periódicos

mais intelectualizados.

O segundo prefácio foi feito para uma edição do livro publicada na Ucrânia. Nele, o escritor discorre sobre a censura propriamente dita e as manipulações da opinião pública, expediente fundamental das ditaduras. Outra vez, precisamos lamentar que o diagnóstico de Orwell continue tão válido em 2024:

Tanto minha mulher como eu vimos gente inocente ser atirada na prisão só por suspeita

de desvio da ortodoxia. No entanto, quando voltamos à Inglaterra, encontramos muitos

observadores sensatos e bem informados que acreditavam nos relatos mais fantasiosos

– envolvendo conspirações, traição e sabotagem – que a imprensa fazia dos processos de

Moscou.

Os ditos processos eram farsas criadas por Stálin para ter o pretexto legal a fim de eliminar seus opositores – esse de que Maduro ainda parece precisar, mas Putin dispensou há muito tempo e aquele coreano nem nunca deve ter sabido que existe. A propósito, em A revolução dos bichos figura outro porco, chamado Bola de Neve, que aos poucos é apagado da memória dos animais e afinal transformado em inimigo da “classe”, da mesma maneira que Stálin fez com Tróstski, revolucionário da primeira hora que terminou assassinado no México por um preposto do “guia genial dos povos”. Falta, no entanto, um personagem a representar Lênin, que foi o mais importante líder da revolução bolchevique, mas cuja introdução complicaria demais a trama.

Um leitor ingênuo poderá supor que Orwell era ferrenho anticomunista. Ao contrário, ele foi um simpatizante do socialismo que não se conformava com o descaminho da revolução soviética. No mesmo prefácio, ele relata ter aderido ao socialismo “mais por desgosto com a maneira como os setores mais pobres dos trabalhadores eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admiração teórica por uma sociedade planificada”.

A fábula de Orwell é, literariamente falando, um pouco tosca. Toda alegoria, por sinal, tem seus furos e suas lacunas. De qualquer modo, ainda vale como alerta, sobretudo para jovens na idade ou na formação política, a respeito do perigo de se deixar seduzir por esses messias factícios que, ultimamente, parecem estar nascendo em árvores – sejam eles de esquerda ou de direita.

Título: A revolução dos bichos
Autor: George Orwell
Gênero: Ficção | Política
Ano da edição: 2007
ISBN-10: ‎8535909559
ISBN-13: 978-8535909555
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).