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Um modelo de economia narrativa

Ratos e homens (1937), de John Steinbeck, é um paradigma de eficácia narrativa. O enredo é enxuto e se concentra nos diálogos; os personagens são poucos, cada qual executa seu papel e, por assim dizer, desaparece da cena quando deixa de ser necessário — como numa boa peça de teatro. Nada falta, nada sobra nesse romance cuja estrutura até poderia descer à elementaridade do conto, não fosse pelo prolongamento imaginário, por meio de rápida recordação por um dos protagonistas, do início do drama que ali se resolve em cerca de 100 páginas.

É possível confirmar a mestria narrativa do ficcionista norte-americano em obras mais extensas. Seu principal livro, As vinhas da ira (1939), é um romance monumental cujos protagonistas são trabalhadores rurais de Oklahoma. Ratos e homens é a melhor forma de ingresso para quem pretenda conhecer esse universo ficcional, que, como ocorre com as obras regionalistas de Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz (para buscar termos de comparação mais próximos), ganha em universalidade quanto mais aprofunda o estudo da paisagem e dos caracteres locais.

O narrador gasta apenas as duas páginas iniciais para localizar George e Lennie no espaço e no tempo. Eles estão chegando para trabalhar numa fazenda nos arredores do rio Salinas, que dá nome à localidade californiana onde nasceu o próprio autor. Steinbeck, muito sabiamente, lastreou sua ficção nas coordenadas geográficas e humanas que melhor conhecia. Ele próprio, depois de abandonar a universidade, foi trabalhador avulso em diversas funções modestas até conseguir um emprego de repórter em Nova York, a partir do qual iniciou a carreira de escritor. Tendo voltado à região natal, preferiu sempre contar histórias cujos personagens tivessem os pés bem plantados na terra.

Assim são George e Lennie. O primeiro se comporta como se fosse o irmão mais velho, o segundo é um brutamontes infantilizado que não resiste à tentação de afagar coisas macias, sejam elas um camundongo morto ou o vestido de uma mulher. George se incomoda em ter que cuidar de Lennie, o tempo todo o chama de “idiota louco” e outros apodos semelhantes, mas não consegue deixar de sentir-se responsável por ele. Agora mesmo, ao chegar à nova fazenda, ele lembra ao amigo que este havia “arrumado confusão” no emprego anterior e deveria, portanto, ficar calado e ser obediente.

O destino mais provável dos dois seria ganhar alguns dólares e partir em busca de outro lugar para trabalhar. Lennie, porém, tem um sonho alimentado pela imaginação do parceiro: eles juntariam dinheiro para comprar uma pequena propriedade, na qual criariam animais e iriam “viver da terra”. Essa miragem de felicidade, para Lennie, consiste especialmente em cuidar dos coelhos que eles teriam; coelhos têm o pelo macio, e o grande prazer de Lennie era afagar superfícies suaves. Há quem tenha visto nesse enredo tão simples uma reescrita do mito bíblico de Abel e Caim, mas os traços da paródia não ficam muito evidentes; sobretudo, falta o maniqueísmo subjacente à rivalidade entre os dois irmãos do relato genesíaco. Não há qualquer maldade em Lennie: além de trabalhador muito vigoroso e fisicamente ameaçador, o grandalhão é o que já se viu: tapado até onde se pode ser. Ele sabe disso, e então se submete totalmente a George. Ou, pelo menos, tenta fazê-lo, no limite de sua embotada compreensão do mundo.

Logo na chegada à fazenda, os dois amigos topam com a complicação. De um lado há o filho do fazendeiro, Curley, que gosta de posar de valentão e implica com Lennie. De outro, a mulher dele, que, frustrada por não ter com quem conversar, vive rodeando os peões da fazenda, sendo por isso considerada desfrutável por aqueles homens rudes. Com Curley, até que a solução não é difícil: depois de ser por ele espancado sem reagir, Lennie quebra a mão do patrãozinho sem fazer grande esforço, deixando-o publicamente humilhado.

Com a mulher é que as coisas se complicam. Os trabalhadores da fazenda chamam a moça de “vagabunda”, supondo-a disposta a colecionar aventuras enquanto seu marido circula exibindo imaginários dotes de boxeador. Numa noite em que a maioria da turma resolve visitar um prostíbulo, Lennie está todo aborrecido no celeiro quando chega a moça. Ele havia acabado de matar, sem querer, o cachorrinho que lhe dera um companheiro de trabalho, e da conversa com a mulher de Curley resulta… não, não é isso que você está pensando; não estamos em um romance de D.H. Lawrence.

O desfecho trágico é menos previsível do que parece. O que importa é que, ao longo de umas poucas horas, o leitor terá sido levado como que pendurado pelo nariz. Assim ocorre nas narrativas mais bem urdidas. Não há tantas assim excelentes, em qualquer literatura, na mesma medida de Ratos e homens.

Título: Ratos e Homens
Autor: John Steinbeck
Tradução: Ana Ban
Gênero: Romance
Ano da edição: 2005
ISBN: 978.85.254.1378-9
Selo: L&PM Pocket

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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