Dobrando a Aposta

Terça-feira, 14 de julho de 2020

Por Patrick Fontaine Reis de Araujo (doutor em Economia pela UFRJ e professor de Economia da UNIFAL-MG)

           O desenho do arranjo político-econômico teve singelas porém importantes mudanças nas últimas semanas. Há um claro movimento de concentração do esforço ideológico na economia.  Personagens mais caricatos e escatológicos são progressivamente neutralizados. Quem dá as cartas, agora sozinho, é o superministro. A estratégia é a mesma: austeridade como linha mestra. Jogada ensaiada. Cala-se os espantalhos, pro pretenso sábio falar.

            O governo, em desespero, dobra a aposta. Atrai as mariposas do luxo[1], amarrando tudo num arranjo com o centrão. A redução do Estado é a travessia para a salvação. Apostadores sofrem de azia e úlcera, motivados pela angústia de serem forçados a aceitar os gastos do auxílio emergencial. William Waack, demitido por racismo, ressurge. Foi o escolhido, para entrevistar o superministro.

            No além-discurso, a gestão pandêmica é o pior sete a um. Setenta mil, e não são gols. Governo incompetente. Nenhuma recomendação oficial de cuidado partiu do representante da vontade geral. Inação com omissão, e diminuição dos riscos. Governo merchandising, prum remédio que não funciona. Continuum de crimes de responsabilidade, líderes de mortes diárias.

            A caminhada da história nem sempre trilha o progresso. Já estivemos melhores, outra projeção de imaginário coletivo. Governos democráticos, produzindo crescimento e distribuição. Celeiro de musas: música com João Gilberto, futebol com Pelé, cinema com Glauber Rocha. Não fomos à lua, mas reaprendemos a voar, em escala planetária. Frutos modernos de uma sociedade próspera, e musas como fonte de divisas.

            Os últimos anos são de regresso. Pequenez e crueldade, mesclados com melindre. Se fosse marginalidade, seria mais justo. É cretino e sórdido, e nada inventivo. Jogo de cena tautológico. Oscila entre o grotesco e o cruel. Pode seguir continuamente, como uma valsa eufórica de um carpe diem demodé. E a crise que vivemos produz uma geração de emuladores sem nenhuma consciência de si. Um voo de mariposa contra a luz. Um ícaro subdesenvolvido. Um saco plástico largado ao vento, que sonha voar pendurado à águia do norte. E os arquitetos do escárnio refugiam-se nas cidadelas, ignorando a beleza da multiplicidade, e repousando – bestializados – as referências num além-mar platônico e distópico.

            Esse teatro do fracasso, já se conhece, e não vale a pena ver de novo. Sociedades estagnadas, mesmo nos rincões da fartura. Podem remediar-se, mas sofrem. Padecem de arritmia. Apostar em commodities primárias – como se pudessem ser pop – é um absurdo lógico. Pastagens ressequidas e buracos de mina mais parecem o horror e o desespero do Cão de Goya. Vale lembrar que, quando tivemos ouro de fato, como nunca antes visto, apenas se reforçou nossa subserviência geopolítica. Não será o ouro de tolo a solução.

            Cabe ansiar e ensejar por uma vanguarda. O encontro de Abaporu com Pixinguinha. Heitor dos Prazeres, regido por Tom Jobim. Cartola e Adoniram, no batuque Batatinha, e cantados por Elis. Baden norteia a harmonia, Vinicius dirige. Candeia escreve, João Nogueira gorjeia. Noel não vai embora, Wilson seresteia. Zé Ketti conta, Villa-Lobos ensina, Moraes Moreira recita, um poema de Aldir. A virtude se vê, a virtude há. O desgosto não é nós. Sabemos pensar. Precisamos crescer, proteger e distribuir.


[1]Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, dedica um dos capítulos de “A Alma Encantadora das Ruas” às mariposas do luxo. A metáfora descreve personagens que adoram se aproximar da luminosidade do luxo, mas que são incapazes de produzir, eles próprios, qualquer luxo. São admiradores da elegância da elite liberal, mas serão sempre percebidos por esta como sombra. Parece ser nesse segmento do espectro político a aposta do governo para encontrar novos adeptos.