No tempo das crianças sem celular

Livro ingênuo, carregado de romantismo no espírito e na técnica, Meu pé de laranja lima (1968) foi um dos maiores sucessos do mercado editorial brasileiro ao longo de décadas, tendo sido publicado em dezenas e dezenas de edições. Parece que ultimamente ele anda um pouco esquecido, apesar de ter sido adaptado pelo cinema em 2012, depois de ter marcado época como novela de TV, primeiro na Tupi, no início dos anos 1970, e depois em outras emissoras.

A ingenuidade do principal romance de José Mauro de Vasconcelos, carioca do subúrbio de Bangu, chega a ser um defeito se usarmos, para medi-la, a comparação com as obras-primas do gênero na literatura brasileira. Mas, olhando por outro ângulo, talvez seja uma das qualidades que mais andam em falta no país. Afinal, da TV aberta à internet, nos últimos 30 e poucos anos a “simpreza” (para falar como o anjo no Auto da Barca do Inferno) do público – e não só do público infantil – tornou-se chave-mestra do faturamento grosso para todo tipo de estupidez oportunista nos campos da cultura e da política.

Zezé, um menino muito pobre, é o narrador. Ele vive com a família no mesmo bairro onde nasceu o escritor, numa época em que ainda era possível pescar lambaris no rio Guandu e quando o grande perigo era atravessar a linha do trem ou a rodovia Rio-São Paulo. Um subúrbio carioca praticamente rural, inimaginável para quem conhece a Sarajevo que aquilo virou. Já se vê que o romance tem boa porcentagem de autobiografia, o que se confirma pela longa e triste dedicatória que menciona, nominalmente, os dois irmãos suicidas do autor, cujos nomes coincidem com os de Glória e Luís, irmãos do protagonista. A propósito, daria uma bela pesquisa a biografia desse ficcionista que foi de tudo um pouco na vida: boxeador, carregador de caixas de fruta, pesquisador bolsista, ator e, segundo as más línguas, até michê. Além disso, Vasconcelos viajou muito pelo Brasil e pela Europa.

A pobreza obriga a família de Zezé a mudar-se, pois seu pai fica desempregado e não consegue pagar o aluguel, nem lhe resta mais crédito no armazém do bairro. O menino tem três irmãs mais velhas e dois irmãos, um maior e outro menor que ele. A mãe, descendente de índios, precisará trabalhar numa fábrica para prover o sustento da família; um pouco mais tarde, também a filha mais velha do casal.

Menino inteligente e sensível, o narrador é também muito traquinas e, como era normal antigamente, apanha muito dos pais e dos irmãos mais velhos. Sua vida é pouco modificada pela entrada na escola, ainda aos cinco anos – Zezé já havia aprendido sozinho a ler. Entre as muitas tristezas de ser uma criança pobre, o Natal sem ganhar nenhum presente é a que inicialmente lhe traz maior desgosto. Depois, aumentam a violência e a frequência das surras, que levou o escritor Luiz Ruffato, em crônica no jornal El País, a qualificar o romance como um “libelo contra a violência doméstica”.

Em meio a esse cotidiano deprimente, a imaginação de Zezé cria um mundo virtual em que se misturam a fantasia do cinema e as conversas com Minguinho, a árvore do título. A incompreensão da família, a quem o menino nem pode contar que ganha um dinheirinho ajudando a vender folhetos com as letras de canções do rádio, leva-o à revolta, e as constantes surras o deixam desconsolado a ponto de planejar o suicídio. Mas, para seu alívio, entrara-lhe na vida o Portuga, um comerciante abastado e solitário que se torna o amigo mais querido, mais até que o pé de laranja lima: um pai substituto para o seu, fracassado e violento.

Porém, como alegria de pobre dura pouco, essa espécie de anjo que aliviava os sofrimentos da criança morre num acidente. A tragédia mergulha Zezé numa terrível crise depressiva, da qual apenas sai para o desfecho melancólico em que se anuncia um futuro marcado pela maturidade precoce e, portanto, pelo desencanto.

Para os jovens leitores, o livro tem a vantagem de dar notícia de um mundo que não mais existe. É certo que a pobreza nunca tem graça, mas ao menos naquele tempo nenhuma criança vivia presa num caixote de cimento: jogava-se bolinha de gude, andava-se livremente pela rua, ia-se ao cinema, experimentava-se todo o dia o conhecimento do mundo real.

Sem o final feliz e a autocomplacência de platitudes como O pequeno príncipe e derivações paulocoelhescas, por que será que Meu pé de laranja lima conseguiu encantar duas gerações de leitores e ser traduzido para mais de 50 idiomas? E o que explica que essa obra tão tocante não venha conseguindo conquistar o público mais recente? São perguntas talvez relevantes para a investigação dos rumos de nosso inconsciente coletivo. É possível que as respostas passem pela industrialização das mentes infantis (incluindo os adultos infantilizados), que Fredric Jameson chamou “colonização do inconsciente”, operada por agentes que contam com a conivência de pais e autoridades, os quais parecem não ver contradição, por exemplo, entre vedar rigorosamente o trabalho infantil e ao mesmo tempo colocar as crianças a serviço do faturamento das megacorporações da internet e dos mercadores de aparelhos eletrônicos.

O conto sem fadas de José Mauro de Vasconcelos, além de leitura cativante, pode contribuir para recuperar um pouco da nossa humanidade perdida. Vale a pena tirá-lo desse injusto esquecimento.

Título: O meu pé de laranja lima
Autor: José Mauro de Vasconcelos
Gênero: Romance
Páginas: 232
Ano da edição: 2019
ISBN: 9788506086896
Selo: Editora Melhoramentos

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.