Obra-prima do romance moderno

À primeira vista, a comparação é inescapável: Chapadão do Bugre (1965) tem que ser visto à luz de Grande sertão: veredas (1956). Mas, se existem evidentes critérios de comensurabilidade entre as obras, elas são muito diversas em aspectos essenciais do cotejo. Está claro que o também mineiro Mário Palmério, nascido em Monte Carmelo, não pretendeu rivalizar com Guimarães Rosa: de saída, passou ao largo de elementos congeniais à escrita rosiana, principalmente o barroquismo da linguagem e a metafísica do enredo.

Não há vestígio de heroísmo em Chapadão do Bugre. Aliás, se houvesse algum, seria da parte da mula Camurça, que acompanha o protagonista José de Arimateia desde a segunda até a última página, sobrevivendo a ele por instantes. Chega a parecer mera esquisitice a atribuição, feita pelo narrador, de consciência à alimária, mas o fato de Camurça “pensar” é essencial em algumas das mais importantes passagens do romance.  De resto, o livro tem algo de ligeiramente fantástico, como indicia a hiperbólica contagem dos bordéis de Santana do Boqueirão (22) e a numerosa, até à inverossimilhança, lista de personagens com nomes esdrúxulos: Clodulfo, Eucaristo, Corifeu, Telésforo, Polinésio, Gorgota, Dosolina…

Não, José de Arimateia não é um herói. Tampouco, um anti-herói. É sujeito comum, apenas dotado de diligência e talento acima da média para aprender, e, por isso, de criança abandonada ascende a dentista prático, amansador de bestas e pistoleiro de aluguel. Nesta parte da jagunçagem, assim como no ambiente boiadeiro, posto que situado em outra região de Minas Gerais, o Triângulo, é que Chapadão do Bugre mais se assemelha ao Grande sertão. Porém, é trilhando um percurso narrativo bem diferente – e propositadamente mais simples – que chega a ser outra obra-prima e um dos grandes romances brasileiros de todos os tempos.

Inicialmente o enredo se organiza em torno de José de Arimateia. Acolhido na fazenda Capão do Cedro, do coronelão pecuarista Tonho Inácio, ele namora e fica noivo da mocinha Maria do Carmo, uma espécie de agregada da propriedade; mas descobre, às vésperas do casamento, que ela o traía com o filho do patrão, sendo os pais do coronelzinho desfrutador os arquitetos de uma pantomima casamentícia na qual era reservado ao noivo o papel de corno manso. Matando Inacinho a machadadas em seguida ao flagrante de traição, o protagonista se lança no sertão como fugitivo e desaparece, não sem antes perseguir num brejal a prometida infiel até perder-lhe o rastro. A partir daí, o romance passa a ser a crônica da busca de vingança por parte de Tonho Inácio, que mobiliza todo o seu poder político e numerosa jagunçagem na intenção de capturar ou matar o assassino.

Em seguida, a narrativa sofre uma insólita inflexão, passando a parecer-se, durante muitas páginas, com a obra anterior de Mário Palmério, Vila dos Confins (1956), que não passa de uma crônica ligeira de intrigas políticas interioranas. Ilude-se o leitor que encarar tais páginas como perda de tônus do romance, pois o enredo retornará ao leito principal, reaparecendo José de Arimateia, primeiro, e durante um bom terço do livro, apenas como nome mencionado a propósito de sua nova condição – adquirida enquanto não tínhamos notícia de seu paradeiro – de bandido a serviço de outro coronel, Americão Barbosa, já na microrregião que dá título à obra.

Haviam tomado o foco do enredo Americão e seus asseclas, de par com um juiz de direito metido a moralista (que tem uma “conje” ausente) e um “delegado militar especial” nomeado pelo governador do Estado para acabar com a jogatina e o banditismo que corriam soltos em Santana do Boqueirão. Aos poucos, vai ficando claro que o grande objetivo da caçada é matar José de Arimateia, e bem perto do desfecho saberemos a verdadeira intenção do juiz Damasceno Soares: é que ele havia tomado Maria do Carmo por amante e tentava fazer da comarca um lugar seguro para a moça, de quem o protagonista havia jurado vingar-se, assim como de Tonho Inácio, que encomendara o assassinato covarde do primeiro protetor de Arimateia, uma espécie de pai adotivo, e de seu amigo “Damastor”.

O capítulo em que a mula Camurça considera, de si para si, os perigos de ser picada por uma urutu-cruzeiro foi a maneira que o narrador encontrou de nos informar como José de Arimateia se havia tornado o pistoleiro mais temido no Chapadão. Para salvar sua maior amiga e única propriedade, ele acerta de longe a cabeça da serpente, e com um único tiro de revólver. Aí ficamos sabendo que Arimateia havia tomado lições com o negro Arcanjo, conhecedor de todos os segredos do manejo das armas de fogo.

Então se precipita o desfecho, com o protagonista conseguindo realizar metade da vingança planejada. Expondo-se a uma caçada implacável desde que se atreve a assassinar Tonho Inácio na frente de testemunhas, José de Arimateia termina caindo em armadilha da qual participa, embora com boa intenção, seu grande amigo Arcanjo – já doente, imprestável para a luta. Da morte do protagonista se conclui que Maria do Carmo e sua mãe-alcoviteira, “Siá” Gorgota, poderão tranquilamente colocar-se a serviço do juiz de direito, que terá apenas o trabalho de inventar novas desculpas para não transferir a família legítima para Santana do Boqueirão.

Chapadão do Bugre é um primor de narrativa. O autor, cuja interessantíssima biografia um dia dará outro belíssimo livro, obteve entre outras a proeza técnica de transferir ao discurso das personagens boa parte da narração, vazada em registro que exemplifica amiúde o riquíssimo e poético falar rural do Triângulo Mineiro no início do século XX, quando “carros de praça” ainda eram puxados por animais e a parca luz elétrica era obtida por meio de motores a combustão. Diversamente da exaustiva poetização da oralidade por Guimarães Rosa, entretanto, Palmério se manteve num limite seguro de funcionalidade que torna seu romance uma leitura fluente e sem percalços que não as hábeis surpresas inseridas no enredo. Verdadeiro milagre de equilíbrio artístico, Chapadão do Bugre entra em qualquer lista dos melhores exemplares do gênero na literatura brasileira.

Título: Chapadão do Bugre
Autor: Mário Palmério
Gênero: Romance
Ano da 1ª edição: 1965
Selo: José Olympio