Contrabando de poesia

Escritores criativos dificilmente fazem sucesso. A voltagem do texto de invenção é para poucos. De vez em quando, uma grande editora se engraça com um deles, ou porque precisa nobilitar seu catálogo excessivamente mercantil, ou porque pressente que o dito autor está em vias de tonar-se notório – ganhou, por exemplo, algum prêmio literário. Nenhum desses tem sido o caso de Whisner Fraga, infelizmente; o que é uma pena, pois seu livro Usufruto de demônios (2022) merece ser mais conhecido.

É um volume pequeno e magro, mas de rara densidade. Compõem-no umas poucas dezenas de minicontos, dos quais só dois ou três ocupam uma página inteira. O recorde de brevidade, intitulado “eles usam a estatística para manipular”, quase chega a ser um haicai, lembrando aqueles da coletânea Pão e sangue (1988), de Dalton Trevisan, o mestre absoluto da concisão narrativa.

Whisner é mineiro de Ituiutaba e tem um canal no Youtube, Acontece nos Livros. Já publicou reuniões de poemas e também contos e romances. Essa sua obra mais recente mira o Brasil da pandemia de Covid-19; a doença é mencionada com frequência, em contextos ficcionais onde sobressai nossa tragédia social. Em “ele acompanha aviões”, o personagem se põe a calcular quantos Boeings teriam de despencar do céu para matar um contingente de 700 mil pessoas, equivalente ao das que morreram em decorrência da Covid.

Mas a exposição da perversidade brasileira se desdobra em várias outras direções, como em “um boi uiva a trégua”, que termina assim:

não pode averiguar, não vale o risco de perder o lugar, dali a pouco o rugido do
diesel estacará a poucos metros, e pode sonhar a janta, o almoço, o homem
desliga o motor, desce, vasculha a carga: não será suficiente para todos, mas é
preciso começar: um osso para cada um.

A ausência de maiúsculas e o estilo rápido não escondem: o autor está fazendo uma espécie de contrabando. É, por sinal, uma tendência interessante da ficção contemporânea: como a poesia (por ser, o mais das vezes, difícil ou banal) foi alijada de qualquer conversa, alguns autores incorporam a seus poemas uma porcentagem cada vez maior de narratividade, o que lhes justifica, não raro, simplesmente renomear como contos textos inicialmente imaginados como poesia. Esse parece ser o caso de vários dos que compõem Usufruto de demônios.

Longe de aderir ao pietismo ideológico em voga, Whisner pratica um sarcasmo que muitos hão de considerar cruel demais. Bem feitas as contas, o escritor encarna o conceito de contemporâneo formulado por Giorgio Agamben, filósofo italiano: expressa com propriedade seu tempo justamente por ser capaz de colocar-se fora dele, evitando aquela espécie de provincianismo no tempo que afeta os pensadores ligeiros, resultando nos juízos anacronizantes tão comuns na imprensa quanto na academia. Assim, em “assistência”, descortina sem dó a probabilidade de um total engano das boas intenções a propósito da mãe que luta para conseguir amamentar sua criança.

Mas sua crônica dos tempos pandêmicos não perde de vista símbolos do Zeitgeist como o núcleo familiar desagregado pelo surto fascista que tomou conta do Brasil, tema de “você não faz mais parte desta família”. Amplia-se, porém, em crônica da impiedade cotidiana em “investimento”, narrativa sobre a neta que furta as economias da avó, destinadas a financiar uma dentadura nova, para investir em bitcoins.

Algumas constantes insinuam o esticar de um tênue fio narrativo a unificar o livro, que às vezes lembra uma espécie de diário. É o caso de várias personagens femininas serem chamadas “helena”, sempre com minúscula. Outra reiteração é o comparecimento de certa “menina” em vários dos textos, e ainda existe a obsessão do autor com as sementes, que também figuram em meia dúzia deles. Daí a impressão de que “nossa terra” seja quase um resumo da trama apenas pressentida:

a menina planta o polegar no chão, uma euforia mergulha naqueles tufos marrons, até à
agitação, um apelo atraca nos lábios e ela sorri, com um alvoroço na palma: uma minhoca,
a menina resgata o bicho e o traz ao ar: engasga um temor, ela pode morrer?, e devolve
tudo ao vaso: há tanto arrebatamento em tão pouco mundo.

Usufruto de demônios contém, é verdade, elipses que por vezes dificultam a intepretação, deixam inconformado o leitor incapaz de lidar com a ambiguidade e a polissemia; afinal, “o silêncio é uma vastidão” incômoda demais para quem se acostumou ao quarto-e-sala das ideologias consoladoras. Se o livro tem um segredo, é sua unidade de tom, que, para resumir, poderíamos dizer: consiste no vaivém do sarcasmo apenas cruel ao terrivelmente cruel: faça-se o cotejo entre “o tatuador não era linguista” e “a quina do equilíbrio”; o primeiro tematiza o drama da evangélica iletrada que tatua “jezus” no próprio corpo, o segundo põe em cena o pai alcoólatra que oferece ao filho faminto um naco de carne retirado da perna.

Razão mesmo tem o editor do livro, Gabriel Morais Medeiros, que anota no posfácio enxergar nessas curtíssimas narrativas “a cosmologia do ódio brasileiro contemporâneo” que “incha, pornograficamente, de 2018 em diante”. Os mais otimistas, é claro, concluirão – de preferência, sem o ler – que Usufruto dos demônios tornou-se datado em 1 de janeiro de 2023.

 

Título: Usufruto de Demônios
Autor: Whisner Fraga
Gênero: Prosa | Ficção | Contos
Ano da edição: 2022
ISBN: 978-65-88777-16-9
Selo: Ofícios Terrestres

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).