A “América” vista pelo avesso

Poucos ficcionistas têm, como John Fante, tão fina noção de quanta poesia precisa conter a prosa para ser boa. Esse é um dos segredos de sua obra, capaz de continuar interessando a leitores de uma época e de um contexto social tão diferentes daqueles em que foram produzidos romances como Pergunte ao pó (1939) e Espere a primavera, Bandini (1938). Quanto ao primeiro, foi um grande sucesso editorial no Brasil quando a Brasiliense lançou sua tradução, em 1984; o segundo – de fato a obra de estreia do autor, que antes só havia publicado contos em periódicos – é menos conhecido, mas pode ser que reúna a melhor contribuição de Fante à ficção.

A poesia entra em sua prosa com frequência e realça, por contraste, a pobreza vivida pelos personagens. Os principais deles compõem uma família americana que vive na pequena cidade de Rocklin, no Colorado: Arturo– com quem a perspectiva do narrador se identifica na maior parte do enredo –, seus irmãos August e Federico, a mãe e o pai. Este é um imigrante italiano chamado Svevo Bandini; Maria, cujo amor por ele tem conotação marcadamente erótica, também descende de uma família italiana, de que só comparece ao romance a impertinente Donna Toscana, detestada pelo genro e não muito querida pelos netos, cuja sobrevivência, porém, depende do pouco dinheiro que de vez em quando ela manda à filha.

Numa literatura afeita a engrandecer as qualidades americanas, a situar seus enredos ao longo de um espaço que às vezes parece quase infinito, muitas vezes cultivando o imaginário posto em voga pelo cinema de Hollywood, John Fante plantou seu primeiro romance na dureza que era a vida dos imigrantes pobres numa cidadezinha insignificante, vida ainda tornada mais difícil pelo inverno rigoroso. O drama dos Bandini é a comida escassa, são as roupas esfarrapadas, é a humilhação de ter os filhos estudando de favor – não por acaso, num colégio católico como aquele que o próprio escritor frequentou na infância.

Svevo Bandini, que tem muita disposição para o trabalho e se orgulha da profissão, não consegue emprego em meio à nevasca e, muitas vezes, mata seu tempo ocioso bebendo com o amigo de infância Rocco Scavone. Maria, sempre às voltas com a tarefa de manter os filhos vestidos e alimentados, conta suas moedas e adivinha que o marido perdeu no jogo os únicos dez dólares que havia ganhado naqueles dias. É mais ou menos assim que o romance começa.

O foco da narração incide sobre Arturo, o mais velho dos meninos, cuja versão adulta irá protagonizar Pergunte ao pó. Em sua caracterização, esta qualidade rara nos autores que adotam um alter ego: não existe complacência da parte do narrador, o garoto é apresentado como um típico jovenzinho egoísta e cruel, capaz de furtar à mãe sua única joia para dar de presente à colega Rosa Pinelli, que, no entanto, o desprezava por sua pobreza, mesmo sendo filha de um operário carvoeiro. Arturo é o queridinho da mãe, que faz vista grossa a seus destemperos e lhe dá dinheiro para ir ao cinema sem que o pai e os irmãos fiquem sabendo.

Quanto a estes últimos, August aparece mais que o caçula Federico. É um garoto dedicado aos estudos e pretende ser padre. Tende ao fanatismo religioso e, ao saber que o pai está envolvido num caso adúltero, acaba espancado pelo irmão mais velho por insistir em contar à mãe a traição. Sua religiosidade, porém, não deixa de ter um viés meio perverso.

O caso do pai com a milionária Effie Hildegarde acentua, pelo aparente abandono em que ele deixará a família, o drama das crianças e, especialmente, o de Maria. Ela, desde que o marido desaparece de casa poucos dias antes do Natal, cai numa depressão profunda alternada com momentos curtos de agitação. Cada vez mais oprimida pela escassez de dinheiro, mas sobretudo pela falta que sente do marido, Maria protagoniza uma tocante cena no armazém vizinho de sua casa: humilha-se perante o vendeiro para conseguir uns poucos víveres, pois “colocar na conta”, já havia muito tempo, se tornara para o Sr. Craik sinônimo de fornecer mercadorias pelas quais dificilmente seria pago.

Temos notícia progressiva do envolvimento de Svevo com a mulher rica, mas em seguida, numa passagem relativamente longa, o narrador assume o ponto de vista do pedreiro para contar como este não havia exatamente abandonado a família. Inicialmente, a visita ao chalé de Effie Hildegarde surgira como oportunidade muito bem-vinda de ganhar alguns dólares na véspera do Natal, pois as crianças sempre esperam – mesmo contra todas as probabilidades da miséria – ganhar presentes, no mínimo comer um pouco melhor naquela noite. Svevo se apropria da voz narrativa para contar como resistiu bravamente à sedução da viúva, tendo sucumbido apenas depois de bêbado.

Quando tenta voltar para casa, ele quase é cegado a unhadas por Maria, que ainda rasga e queima o dinheiro ganho na dúbia condição de pedreiro e amante profissional – porque suas relações com a viúva não passavam de sexo, como ficará claro no desfecho. Furioso com o ataque sofrido, ele volta para Effie Hildegarde, na casa de quem Arturo vai encontrá-lo nas últimas páginas do romance. Há aí uma cena meio confusa e um tanto ligeira que proporciona o rompimento entre Svevo e Effie Hildegarde e, de modo bem conveniente, a oportunidade da volta ao lar. Agora, a primavera estava chegando e as agruras do desemprego passariam, enquanto Maria, cansada de ter ataques de fúria (quase havia atravessado o marido com uma tesoura, na segunda tentativa de Svevo de fazer as pazes) e amaciada por uma intervenção mentirosa de Arturo, estava disposta a receber de volta o adúltero. Para Arturo, a proximidade da primavera significava o retorno aos treinos de beisebol, nos quais depositava seus sonhos de fama e dinheiro.

Rosa Pinelli, que havia sumido da escola na volta às aulas, subitamente morre de pneumonia. Esse acabamento açodado não é exatamente shakespeariano, mas fica longe de estragar o livro. Como ocorre sempre com a grande literatura, Espere a primavera nos mostra a humanidade em estado bruto chocando-se contra as situações-limite armadas pelo destino implacável e pela nossa frágil condição de bonecos de barro.

Título: Espere a Primavera, Bandini
Autor: John Fante
Gênero: Romance
Ano da edição: 2003
ISBN: 978-8503007559

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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