Cínthya Bastos Ferreira¹
O encontro que se opera entre as transações econômico-sexuais que constituem o fenômeno social da prostituição e os deslocamentos geográfico-espaciais é uma temática que, não raro, aparece recoberta pela noção de tráfico sexual de mulheres. No entanto, esta equiparação da mobilidade de mulheres que vivenciam a prostituição ao tráfico sexual em si tende a camuflar nuances que são significativos e que remetem a dimensões macro e microssociais simultaneamente.
Por um lado, a equiparação supracitada opera uma confusão conceitual que tem como consequência mais imediata a perda das especificidades do tráfico, que envolve a violação dos direitos humanos; por outro lado, e em decorrência, esta equiparação tende a comprometer o direito das prostitutas de se deslocarem, uma vez que estes deslocamentos passam a ser vistos pelo prisma unívoco da ilegalidade e da criminalização.
Somado a isso, esta nebulosidade, que acompanha a definição do fenômeno, se pronuncia inclusive no descompasso entre as normativas internacionais expressas no Protocolo de Palermo e o previsto pelo Código Penal brasileiro. Enquanto o Protocolo de Palermo inclui um debate sobre o consenso (OLIVEIRA, 2008), o Código Penal tende a caracterizar o tráfico em função do exercício da prostituição, independentemente de haver ou não coerção e exploração, descartando a possibilidade de migração voluntária.
Um outro aspecto bastante presente é a reflexão em torno das condições de produção do conhecimento na área, visto que, em razão das definições de tráfico serem conflitantes e marcadas por certa imprecisão, as estimativas sobre o fenômeno tendem a variar, de modo que a produção do conhecimento sobre o tema não possui dados congruentes, oscilando a depender da definição adotada e da interpretação que se faz dos termos que não são rigorosamente caracterizados (BLANCHETTE, PINHEIRO, SILVA, 2005; PISCITELLI, 2008).
Ao encerrar a problemática do tráfico ao exercício da prostituição, corre-se o risco, entre outras coisas, de perder de vista um contexto marcado pela crise do estado nacional, em que a imigração tem sido compreendida como um aspecto gerador de instabilidade para muitos países de capitalismo central, de modo que a visibilidade mais ou menos pronunciada do fenômeno está também condicionada às políticas de combate à imigração irregular adotadas pelos governos (PISCITELLI, 2008; BLANCHETTE, SILVA, 2009).
Neste ínterim, produz-se um cenário de promoção do pânico, acirramento da vigilância policial e de controle fóbico das fronteiras. Porém, não se limita a isso: evoca ainda a fantasia do resgate altruísta que, em suas camadas extra-oficiais, mas nem por isso menos incisivas, promovem um discurso racializado que apaga a capacidade de agência de mulheres originárias do Sul global e que carregam consigo a mácula do colonialismo.
Deste modo, constatam-se as reminiscências do “fardo do homem branco” no contexto neoliberal, em que os países de capitalismo central se veem com a suposta incumbência moral de salvar as vítimas traficadas; incumbência tal que se encontra longe de representar um compromisso substantivo de transformação das condições estruturais que engendram assimetrias de poder a nível internacional.
Omite-se, ademais, que a situação social das imigrantes não traficadas pode ser bastante semelhante às enfrentadas pelas vítimas do tráfico, no que se refere às dificuldades sociais de integração e à exploração vivida no trabalho. Mais do que isso, conforme discute Piscitelli (2007, 2008), a vulnerabilidade que acompanha as migrações femininas irregulares, a princípio não associadas à prostituição, por vezes posiciona a prostituição como horizonte, vistas as dificuldades de se inserirem no mercado de trabalho formal enquanto indocumentadas e sem domínio da língua.
Com isso, constata-se uma tendência de individualizar os problemas, via criminalização daqueles que são identificados como facilitadores do que se afirma combater, mesmo que se mantenham intocadas as suas determinações mais nucleares. Essa tendência é explicitada também por uma realidade em que o foco passa a ser a criminalização da ré e não a reparação do dano sofrido pela vítima, que simplesmente é deportada (OLIVEIRA, 2008; ZIMMERMAN et al, 2009). Desse modo, ainda que as atividades de combate ao tráfico envolvam, formalmente, prevenção, proteção e ação penal, é este último, associado ao policiamento e ao controle das fronteiras, que ganha centralidade.
Tendo em vista essas considerações iniciais, parece haver uma defasagem no tocante às perspectivas que integrem, num todo indissociável, os diversos vetores que constituem o fenômeno do tráfico, pois este formula sínteses continuadas das relações de gênero, raça e classe que não são passíveis de serem encerradas no âmbito individual: isto é, a penalização dos facilitadores não põe fim ao tráfico internacional, porque combater os efeitos desconsiderando suas raízes é insuficiente.
Isto é, as expressões individuais apenas sinalizam e corporificam relações que estão postas estruturalmente e a nível internacional, ou seja, que são condições da própria reprodução social, em sua forma histórica capitalista, a qual precisa passar, também, por uma avaliação – sem perder de vista, contudo, suas materializações particulares e o suporte que estas demandam.
Mais do que isso, embora os deslocamentos internacionais mobilizem diversas idealizações de uma vida melhor e, por isso, frequentemente, estão no horizonte como busca de progresso e estabilidade financeira, os deslocamentos que perpassam a vida na prostituição não se restringem a eles. Os trânsitos no interior do país também são uma realidade regular e evidencia que ainda que o tráfico interno tenda a receber menos atenção, em muitos países, ele supera o tráfico transfronteiriço (ZIMMERMAN, 2009), sendo que este circuito não está limitado a grandes centros urbanos (NASCIMENTO, GARCIA, 2015).
Por seu turno, o turismo sexual, marcado pelo envolvimento de estrangeiros que viajam em busca de sexo pago, é também um fator que promove, facilita ou é vivenciado como estratégia migratória, evidenciando o caráter eminentemente dinâmico dos fluxos espaciais na prostituição. Quanto a isso, Piscitelli (2007, p. 741) constata que “as migrações vinculadas ao turismo sexual são heterogêneas e nem sempre têm como efeito a inserção de brasileiras na indústria do sexo no exterior”.
Neste caso, os casamentos entre mulheres brasileiras, originalmente prostitutas em contexto de turismo sexual, e estrangeiros, originalmente turistas, uma outra realidade a ser considerada, pois estes remetem à conflitos múltiplos que tensionam, especialmente, expectativas de gênero marcadas pelo tradicionalismo: “um dos motivos que conduzem esses homens à escolha de esposas brasileiras é a procura de estilos de feminilidade considerados difíceis de achar entre europeias, “menos independentes”, que incluem a disposição para a maternidade” (PISCITELLI, 2007, p. 726).
Feitas essas considerações, os fluxos migratórios que compõem a realidade da/na prostituição são marcadamente diversos e acionam múltiplas determinações e consequências, dificilmente sendo passíveis de generalizações. Além disso, esses fluxos parecem se inserir em um movimento migratório mais amplo que se intensifica a partir da década de 1980 e 1990, com um forte componente de gênero e raça que se entrelaça com os processos de reestruturação produtiva e ajuste estrutural, os quais colocam na ordem do dia também a divisão internacional e sexual do trabalho (FEDERICI, 2019).
*Artigo está disponível na íntegra neste link.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula da. As American girls: migração, sexo e status imperial em 1918. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 15, n. 31, p. 75-99, 2009.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
KEMPADOO, Kamala. Revitalizando o imperialismo: campanhas contemporâneas contra o tráfico sexual e escravidão moderna. Cad. Pagu, Campinas, n. 47, 2016.
OLIVEIRA, Alexandra. Prostituição feminina, feminismos e diversidade de trajetórias. Ex aequo, Vila Franca de Xira, n. 28, p. 17-30, 2013.
NASCIMENTO, Silvana de Souza; GARCIA, Loreley Gomes. Nas armadilhas do desejo: privações e movimentos de jovens prostitutas em zonas rurais. Cad. CRH, Salvador, v. 28, n. 74, p. 383-396, 2015.
OLIVEIRA, Marina Pereira Pires de. Sobre armadilhas e cascas de banana: uma análise crítica da administração de Justiça em temas associados aos Direitos Humanos. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 125-149, 2008.
PISCITELLI, Adriana. Sexo tropical em um país europeu: migração de brasileiras para a Itália no marco do “turismo sexual” internacional. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 717-744, 2007.
PISCITELLI, Adriana. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de pessoas. Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 29-63, 2008.
PISCITELLI, Adriana. Revisiting notions of sex trafficking and victims. Vibrant, Virtual Braz. Anthr., Brasília, v. 9, n. 1, p. 274-310, 2012.
PISCITELLI, Adriana. Violências e afetos: intercâmbios sexuais e econômicos na (recente) produção antropológica realizada no Brasil. Cad. Pagu, Campinas, n. 42, p. 159-199, 2014 .
ZIMMERMAN, Cathy et al. Trafficking in persons: a health concern?. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1029-10
Cínthya Bastos Ferreira é egressa do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da UNIFAL-MG. É graduada também em Psicologia pela PUC-MG, tendo atuado como monitora da disciplina Epistemologia da Psicologia, além de realizar estágios formativos no âmbito da educação e da saúde pública. Na UNIFAL-MG, foi bolsista nos programas de ensino Residência Pedagógica e Pibid; extensionista no projeto Observatório da Democracia, e desenvolveu pesquisas acerca da temática da prostituição e suas interfaces interseccionais, pelo Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC). Atualmente é membra do Grupo de Estudos sobre Trabalho e Tecnologia (GETT) da Instituição. Suas áreas de interesse são: estudos feministas, prostituição, sociologia do trabalho, psicologia social crítica, educação e ensino de sociologia, teoria marxista da dependência.
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).