Estrabuleguice araxaense

Por estranha que pareça a expressão, Grogotó (2000) é uma encruzilhada de sínteses. Não por acaso o poeta e crítico José Paulo Paes usou as palavras ideograma e epigrama para tentar definir os minicontos de Evandro Affonso Ferreira; a escrita chinesa e a inscrição lapidar grega têm em comum o caráter extremamente sintético, sendo por isso bons termos de comparação para as curtíssimas narrativas do escritor nascido em Araxá, também publicitário e livreiro, que havia estreado em letra impressa com os Bombons recheados de cicuta (1993).

A coletânea lembra um pouco os Exercícios de estilo (1948), do francês Raymond Queneau, que consistem em narrar muitas vezes o mesmo episódio usando técnicas, pontos de vista e linguagens diferentes. Nos minicontos do brasileiro, porém, as histórias são diferentes e o procedimento é que praticamente não muda – quase sempre a narrativa consiste numa fala ininterrupta cujo sentido é dado apenas na última linha. Tomemos como exemplo este “Fogo fátuo”, uma das muitas reaplicações do mesmo paradigma:

Uma… duas… três… quatro… cinco… seis… sete… oito… nove… dez… onze… doze… treze… catorze… quinze…dezesseis, merda, caiu outra vez, não consigo fazer sequer vinte, quem diria, nem vinte, pouco tempo atrás, antes do pó, oitocentas, novecentas, mil embaixadas.

O padrão de Grogotó, então, é o monólogo. Geralmente há um narrador cuja loquacidade se espraia por poucas linhas, sendo interrompida exatamente no ponto em que se revela a chave interpretativa. No texto transcrito, é preciso entender um pouquinho de futebol para compreender que a estrutura praticamente poemática faz convergir num único e curtíssimo discurso toda a história da decadência de um futebolista viciado em cocaína. O recurso à elipse chega, uma vez ou outra, a tornar algum dos minicontos até meio obscuro.

Há narradores que interrompem suas falas porque estão morrendo, e a graça do texto está em descobrirmos isso apenas no finalzinho; é só então que o leitor compreende ter estado a “ouvir” o discurso de um moribundo. Outros apenas exibem sua “Garrulice” (título que poderia ser dado a praticamente todos os minicontos do livro), com o mesmo efeito gerado pela surpresa do desfecho. Como introdução a outros elementos recorrentes na coletânea, sirva este resumo (para evitar a transcrição do vocabulário chulo, nada incomum no livro) de “Lanfranhudo”: quem fala é um viúvo que, relembrando as humilhações sofridas da parte da mulher falecida, imagina que ela ainda comentaria maldosamente, se pudesse vê-lo agora urinar-lhe sobre o túmulo, a incompetência para “sacolejar direito” a genitália.

O título do conto representa bem outra das referidas recorrências: Evandro Affonso Ferreira abusa de palavras e expressões incomuns no vocabulário do brasileiro médio e até no das pessoas mais cultas. Alguns desses termos são arcaísmos, outros são regionalismos. Em certa passagem, o autor fornece uma pista: a mulher que desqualifica seu marido com palavras para ele desconhecidas é uma lexicóloga, ou seja, dicionarista. Em “Sacatrapo”, o suspeito que enfileira uma lista de expressões idiomáticas regionais é identificado sem dúvida, pelo narrador, como “quem roubou meu precioso dicionário de fraseologia”: seria grande parte do palavrório de Grogotó, a começar pelo título mesmo, pinçado do Tesouro da Fraseologia Brasileira (1987), de Antenor Nascentes, ou de outra obra do mesmo tipo?

“Grogotó”, o miniconto que abre o volume:

Trinta e cinco anos fazendo roupas de talhe masculino, eah, trezentos e cinquenta ternos

talvez, tesourei um sem-fim de casimiras linhos que tais, vida toda quase, debruçado sobre

aquela Singer velha de guerra, infarto maldito me trouxe de repente a esta UTI, destino

fez chanfreta comigo, gostaria tanto de fazer o meu próprio jaquetão de oito botões pra

chegar vistoso que só vendo diante do criador do Univer…

E o alfaiate, é claro, expira antes de terminar a frase.

Há enredos bastante originais reduzidos ao mínimo: o do coveiro aposentado que sente saudade de enterrar os outros, o do suicida fracassado, o do preso que sabe tudo sobre aves…

Mas nem todos os contos do volume são assim tão “mini”. Existem alguns mais longos, como “Ímpeto” (quase duas páginas), em que fala uma mulher desabafando sobre as humilhações e a traição sofridas ao longo da vida – ao lado do túmulo do marido, ela retribui o xingamento recebido por tantos anos: “burro, burro, burro!”. Já se vê que esse não passa de uma réplica invertida do citado “Lanfranhudo”. A propósito, seria uma tarefa longa desvendar todo o preciosismo vocabular do livro, mas grogotó significa, segundo o autor, “Agora é tarde! Acabou-se!”, e o dicionário nos diz que lanfranhudo é um sujeito destemido ou abusado. É possível perceber a preferência do ficcionista por certos termos: estrabuleguice, conhecer o rigor da mandaçaia, comer insosso e beber salgado.

Talvez seja melhor considerar Grogotó um caderno de exercícios preparatórios para a obra posterior de Evandro Affonso Ferreira, em que já constam alguns romances. Apesar de a ideia geratriz da coletânea ser muito potente, ao menos umas oito ou dez das narrativas não têm o mesmo nível do restante, e o uso dos mesmos recursos, além da repetição de alguns temas – como a “guerra conjugal” em que transparece a nítida influência de Dalton Trevisan –, só não torna o livro cansativo porque ele pouco passa das 100 páginas. Mesmo assim, a leitura vale como introdução a um dos estilos mais originais da literatura brasileira contemporânea. Longa vida ao estilista araxense estrabulega!

Título: Grogotó
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Gênero: Contos
Ano da edição: 2000
ISBN-10: ‎8574750174
ISBN-13:‎ 978-8574750170
Selo: Topbooks

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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