Pequeno museu de novidades

Morto no final do ano passado, Olavo Romano foi um escritor privilegiado, daqueles que só precisam escrever na medida do prazer que a atividade lhes causa e pode proporcionar a seus leitores. Mineiro nascido no distrito de Morro do Ferro, em Oliveira, trabalhou na Fundação João Pinheiro e como professor de inglês em colégios, tendo-se aposentado como procurador do Estado. A estreia na literatura se deu com o livro Casos de Minas, em 1982, e logo em seguida sua obra era catapultada à fama nacional com a publicação, pela editora Ática, do volume Minas e seus casos.

Era um tempo em que o Brasil tentava sepultar de vez a ditadura militar; também se encerrava um período de grande agitação cultural no país. Na luta contra o regime autoritário, o humor era um recurso privilegiado, assim como a canção popular, que atingiu na época seus píncaros em termos de qualidade, especialmente em se falando das letras. O texto humorístico continuou a trajetória ascendente ainda por quase uma década, acabando por cair, com a extinção da genial TV Pirata, no nivelamento por baixo que atingiu praticamente toda a cultura brasileira até que chegamos à onipresença do satanejo (sic) gospel (sic).

Minas e seus casos (1984) exemplifica aquela atmosfera bem-humorada, quando não havia um policial de costumes de plantão em cada esquina para denunciar qualquer piada como ofensiva a este ou àquele grupo. Havia ainda o Pasquim, estavam surgindo o Planeta Diário e a Casseta Popular (impressos), e a coletânea de crônicas O analista de Bagé (1981), de Luís Fernando Verissimo, era um estrondoso sucesso de vendas.

Sem ser tão engraçado – falta-lhe o gume afiado da crítica social – como os de Verissimo, o livro de Olavo Romano também é capaz de provocar boas risadas. O que pode atrapalhar um pouco é que ele fala de um tempo ainda anterior: aquele Brasil rural do início do século XX, de que em certos aspectos o interior mineiro foi sempre boa síntese. Época em que médicos vagavam pela zona rural em lombo de burro, cobrando suas consultas pelo número de léguas percorridas. Época de cenas como esta, virtualmente ininteligíveis para quem não viveu numa “cidadezinha qualquer” há mais de 50 anos:

Tirou a binga do bolso, abriu (…) Pegou o fuzil, um pedaço de ferro, mais a pedra-fogo, começou a bater. A primeira fagulha que caiu soprou calibrado, foi soprando, logo aparecia o fogo, aquela cor bonita dentro do cilindro de lata.

A graça dos casos de Olavo Romano reside na estrutura de piada. Alguns são mesmo anedotas até um pouco manjadas. Mas existe também a evocação quase documental de atitudes risíveis do matuto confrontado com a modernidade, caso do episódio em que um sujeito, enfeitiçado pela novidade do cinema, demonstra confundir o mundo real com a ficção exibida num filme western:

Aí entrava, sentava e nem o chapéu tirava, por mais que a molecada gritasse e o povo pedisse. Totonho Ananias vinha da roça, a janta era muito cedo, trazia matula. Na hora de mais nervosismo, tirava uma perna de frango, começava a comer. De repente, apontava com ela, avisando que os índios vinham chegando. O mocinho não percebia, então ele levantava e berrava:  – “Cuidado, que esse bugre te mata, sô desgraçado. Olha ele lá em riba da pedra.”

Por conta do “riba”: o livro também dá conta de um contexto histórico em que reproduzir tal e qual a linguagem popular não era sinal de preconceito nem servia de trampolim para teorizações girando em falso. Aliás, os narradores de Olavo Romano exercem a prerrogativa de contar histórias como se estivessem conversando fiado, com as pausas e hesitações que isso implica, às vezes desviando o assunto, às vezes mostrando não ter certeza a respeito de algum detalhe. É o velho estilo do contador de “causos”.

As ilustrações são de Zélio Alves Pinto, o irmão menos famoso de Ziraldo. Menos famoso, mas não menos talentoso; suas charges chegam a lembrar as mais brilhantes xilogravuras, pela exploração extremamente hábil do contraste entre preto e branco; como em todo livro bem editado, o material gráfico vem corroborar o conteúdo dos contos – que são breves, raramente chegando a três páginas.

E, pois que falam de um mundo que não existe mais, essas narrativas podem ter, para um leitor atual, o sabor da surpresa – existem surpresas no passado, fiquem avisados os que as procuram somente no futuro. Há no livro situações esquisitas como a escolha de um candidato a vereador pelo peso: ganha o mais gordo; ou aquela do sujeito que conversa com sua enxada. O conto que expõe esta última situação é um dos melhores, assim como seus dois antecedentes, “Corta-saco” e “Changuana”.

Mas que diabo seria changuana? Mesmo quem viveu aquelas décadas no interior sul-mineiro vai encontrar palavras que não conhece. Changuana é café ralo, “água-de-batata”. E aqui entra mais um elemento que compõe a graça do livro: sem ser nenhum Guimarães Rosa, Olavo Romano faz também seu modesto inventário do falar regional –  “candonga”, “como coisa que”, “envinha todo espanéfico”, ser “do tipo roscofe”.

Destoando dos outros 36 textos, “Vistoria I” e “Vistoria II” não podem, a nenhum título, ser considerados contos. Em compensação, trazem uma antologia engraçadíssima (e verdadeira, segundo o autor) de trechos dos relatórios feitos por certos fiscais de crédito rural. Esses excertos vão da simples confusão estilística a frases realmente delirantes, ditadas não por pendores surrealistas dos funcionários, mas por sua imperícia com o idioma, agravada por certa afetação bacharelesca. Vale apena transcrever exemplos:

Nada mais vi a não ser um recibo de bezerros mamando a 200. Cliente aguarda a capilaridade pluviométrica da zona para efetuar o mister. O burro novo é bem mais moderno que o contratual, pelo de raio branco. O cavalo estava ajudando nos serviços da fazenda. Ele liquidou o financiamento com a mandioca particular que está sendo carregada para a casa de farinha do vizinho. O sol castigou o mandiocal. Se não fosse esse gigante astro as safras seriam de acordo com as chuvas que não vieram.

E, para quem pensa ser mitologia que muitas pessoas, antigamente, tomavam banho só no sábado, há em duas ou três histórias a referência a um “banho geral” excepcionalmente tomado no meio da semana e devido a alguma circunstância especial.

O encontro com uma obra do tipo de Minas e seus casos pode ser uma experiência preciosa. Mas, sem dúvida, sobretudo o será para aqueles que juram que o mundo começou anteontem.

Título: Minas e seus casos
Autor: Olavo Romano
Gênero: Contos
Ano da edição: 1991
ISBN: 97885219028988

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).