Do estilo à gramática, ida e volta

Engana-se quem supõe que a Literatura e os estudos linguísticos são irreconciliáveis inimigos figadais. Existem áreas em que a colaboração de ambos é imprescindível; uma delas, como demonstra o livro A Estilística (1991), de José Lemos Monteiro, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará, é o ramo da Linguística que figura no título.

O ótimo recorte proposto pelo livro também atesta como as ciências diretamente ligadas ao indivíduo humano ou à vida social precisam, o tempo todo, equilibrar-se entre duas frases. A primeira, o lema de Galileu que orientou todo o projeto da ciência moderna: “Mensurar o que seja mensurável e tornar mensurável o que ainda não o seja”. A segunda, um trecho do diário íntimo de Kafka: “mas o que é humano não comporta cálculo”.

Monteiro começa seu estudo definindo a Estilística e tentando estabelecer seus limites, circunscritos à busca de expressividade por meio da opção entre diferentes procedimentos linguísticos. Na prática, esse conceito supõe a existência, ao menos teórica, de um “grau zero” de estilo, que seria o emprego puramente racional e denotativo da linguagem – ou seja, o mais próximo que a comunicação poderia chegar do lema de Galileu. A seguir, o autor envereda pelos principais estudos que, ao longo do século XX, procuraram estabelecer conceitos científicos para o uso das palavras. Chega, naturalmente, ao esquema de Roman Jakobson, que em 1946 delimitou de uma vez por todas (é o que parece, até o momento) as funções da linguagem, resumindo-as àquelas seis de que todo estudante do ensino médio deve ter ouvido falar: referencial, emotiva, conativa, fática, poética e metalinguística.

Em seguida vem o estudo dos “desvios” que explicam cada efeito estilístico: trata-se de entender os principais processos por meio dos quais, na escolha das palavras e da sua disposição no discurso, um falante ou escritor se afasta das construções mais previsíveis. Aqui, a Estilística coincide em boa parte com a velha Retórica, que, segundo o autor, perdeu seu prestígio por haver exagerado na multiplicação da terminologia referente às figuras de linguagem. A cada passo, nessa parte que é a mais detalhada do livro, as considerações de Monteiro são embasadas teoricamente e apoiadas em apropriadas citações, a maioria das quais transcrita de obras literárias. Afinal, não há como não admitir que os usos mais expressivos da linguagem foram e são feitos por poetas e ficcionistas.

Quanto à organização do texto, o livro enfatiza as escolhas que resultam numa comunicação eficaz de acordo com a intenção do emissor e a capacidade de entendimento do destinatário da mensagem. É aqui, principalmente, que Monteiro faz críticas ao ensino de gramática, chegando a dizer, por exemplo, que “o ensino das regras de regência é, de certa forma, uma perda de tempo”. Tal juízo será, no entanto, relativizado na parte final do volume, dedicada às “virtudes” e aos “vícios” do estilo, vinculados (o autor o reconhecer meio relutantemente) a um entendimento mínimo das normas gramaticais.

O capítulo “A escolha estilística” é uma sequência de exemplos relacionados às opções disponíveis a quem estrutura uma mensagem. Monteiro ressalva que nem sempre a escolha é consciente, antecipando a parte mais problemática de seu estudo, que será a do “simbolismo fonético”. Demonstra, por exemplo, que uma vírgula de mais ou de menos, ou a alteração da ordem dos termos de uma oração, podem alterar e até inverter a intenção comunicativa, e compõe uma casuística muito útil, sobretudo para quem trabalha com a linguagem escrita.

Espinhosa mesmo é a parte que trata do possível – ou impossível, de acordo com a teoria clássica de Saussure – sentido intrínseco das menores unidades sonoras de um idioma. Ela obriga o autor a retornar aos fundamentos da Linguística e inventariar uma série de posições contraditórias entre si. Mais uma vez, a lista de exemplos é muito interessante; não fica esclarecido, porém – nem poderia ficar, pois a discussão remonta ao Crátilo, um dos diálogos escritos por Platão –, quais são os limites entre o som e o sentido: se a onomatopeia evidencia que nem tudo é arbitrário na linguagem, aparecem situações em que a postulação de sentido para um fonema é bem questionável, dando os argumentos a impressão de serem meio “chutométricos”. Claro, uma obra introdutória não teria como resolver esse problema multissecular; fica valendo o alerta de que, por trás do som de uma palavra, pode haver sugestões difíceis de determinar, mas determinantes no efeito que ela causará na sensibilidade e no intelecto do ouvinte. Ouvintes imaginários, no caso da poesia, pois a arte da declamação está quase extinta, assim como o conhecimento das técnicas de versificação, que estão longe de reduzir-se à métrica e às rimas.

Decorrência do anterior, o capítulo “As vogais e as cores” parte do poema “Correspondências”, de Baudelaire, para empreender uma instigante discussão da possível relação entre os fonemas e o resultado estético-afetivo das evocações que eles provocam. Mais uma vez, a poesia é o campo de experimentos privilegiado.

O penúltimo capítulo de A Estilística trata especificamente do significado. Aí, mais uma vez, o autor lança mão de exemplos retirados da literatura. Fica óbvio, para quem ainda duvidar disso, que nenhuma classe de usuários do idioma procede, em suas escolhas linguísticas, de maneira mais eficaz e consciente que a dos bons escritores. Mas o que é um bom escritor? Dos exemplos apresentados por Monteiro, deduz-se uma definição tautológica: bom escritor é o que faz bom uso das possibilidades de seu idioma. Corolário: como o “bom” uso supõe saber o que se está fazendo, resta claro que dificilmente um escritor será bom se não dominar a estrutura da língua. Não por acaso os exemplos oferecidos são de Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Machado de Assis e outros autores cuja intimidade com a língua portuguesa era muitíssimo acima da média.

E são matéria-prima por excelência do texto literário as escolhas que implicam a polissemia (enunciados com vários sentidos possíveis) e a linguagem figurada. Quanto a outros aspectos da Semântica, já coincidem com um uso mais geral da linguagem – caso da sinonímia. Em relação a palavras que teriam o mesmo significado, Monteiro afirma não haver, rigorosamente, sinônimos, pois nunca é a mesma coisa, por exemplo, dizer “ir ao Rio” e “ir para o Rio”.

Finis coronat opus. Para os leitores que chegarem estonteados à conclusão (a qual não é, formalmente, uma conclusão, mas conclui), tantas são as informações disseminadas pelo caminho, há um prêmio. No capítulo “As virtudes (e os vícios) do estilo”, Monteiro coloca algumas balizas inegavelmente úteis para toda e qualquer pessoa que trabalhe com textos: é preciso que uma mensagem apresente correção gramatical – ora, quem diria! – clareza, harmonia, concisão e propriedade. Senão por outras, pela simples razão de que alguém que não domina os fundamentos do idioma português pode cometer asneiras com a última frase do livro, que é uma ilustração antiexemplar:

As florestas do Brasil são de tal modo virgens que até hoje a mão

do homem não conseguiu lá pôr os pés.

Tal tirada de humor involuntário, desrecurso em que são useiros e vezeiros escritores como Ponson du Terrail (“mãos frias como as de uma serpente”) e Paulo Coelho (“ventríloquo esquerdo” etc.), merece um parágrafo a mais, a título de comentário do contrário.

Certo antigo professor de Literatura vivia contando a seus alunos a história que segue. Numa entrevista à Playboy (no tempo em que ela entrevistava apenas quem tivesse o que dizer), o jornalista Fernando Morais, autor de sucessos editoriais como Olga e Chatô, criticava a exigência de diploma específico para que alguém pudesse trabalhar na imprensa brasileira. Em vez de gastar cinco anos aprendendo teorias e o manejo técnico de aparelhos, ele argumentava, melhor seria para o futuro profissional do ramo ler as obras completas de Eça de Queirós. Com o autor de O primo Basílio, justificava Morais, aprendem-se duas qualidades que nenhuma faculdade consegue ensinar: primeira, não acreditar em tudo que se ouve dizer; segunda, empregar o idioma português com a precisão de um bisturi.

Título: A Estilística
Autor: José Lemos Monteiro
Gênero: Linguística
Ano da edição: 1991
ISBN: 978-8508037827
Selo: Atica Editora

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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