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Apóstolo da tolerância

Há muitas qualidades invejáveis no texto do escritor espanhol Fernando Savater, nascido em 1947 e autor de dezenas de obras filosóficas e, às vezes, literárias. Mas a qualidade mais rara, que não está muito em moda hoje em dia, é a tolerância; tanto que Savater, nascido numa cidade basca, jamais se nomeia pelo gentílico identitário, antes empunha a bandeira do humanismo naquele sentido bem antigo definido pelo dramaturgo latino Terêncio, que viveu no século II a.C.: “Sou humano, e nada do que é humano me é indiferente.”

O nacionalismo euskera, ou qualquer outro, é para Savater um prejuízo à tarefa essencialmente humana de fundar a vida comunitária em semelhanças em vez de nas diferenças. Visões de mundo que tendem ao exclusivismo fechado em guetos cada vez mais restritos e abstrusos se destacam entre os fantasmas combatidos por ele, num estilo ao mesmo tempo contido e malicioso, muito capaz de iluminar mentes que andam estonteadas pela nebulosa de narrativas em circulação nestes tempos nos quais, por vezes, temos a impressão de existirem mais produtores de conteúdo simbólico do que consumidores, especialmente na realidade paralela da internet.

Savater já tem vários livros traduzidos no Brasil e foi colunista da Folha de S. Paulo antes de o jornal praticar a espécie de autoexílio eletrônico em que resultou sua opção pelas pautas da moda – continuando a ser o mais moderno, “hélas!”, veículo da outrora grande imprensa brasileira, é bom que se diga. Dessa obra traduzida, Desperta e lê talvez seja item mais interessante, apesar de o conjunto de textos que o compõem ser um pouco desigual.

A primeira parte do livro, “Você tem razão”, é a mais densa e ocupa um terço das páginas. São ensaios sobre a especialidade do autor, cuja formação inicial foi em filosofia. Títulos como “Atualidade do humanismo” e “Imaginação ou barbárie” já dão uma ideia dos temas discutidos. Com argumentação cerrada e sutil, às vezes chegando a lembrar os velhos conceptistas barrocos, Savater discorre sobre muitas das questões mais relevantes do pensamento contemporâneo: da possibilidade do apocalipse nuclear (o escritor nasceu e se formou intelectualmente num mundo acorrentado à Guerra Fria) aos mitos fabricados pela indústria cultural, da ecologia à necessidade de coexistência pacífica entre povos e culturas.

Em meio a sua viagem crítica nos últimos anos do agonizante século XX, Savater nunca perde de vista as referências mais seguras da cultura europeia, mas tampouco desdenha a importância do cinema americano, embora se declare totalmente ignorante, por exemplo, a respeito do rock. Ele procura ser, mesmo ganhando a vida como professor universitário, um daqueles pensadores “atualmente em vias de extinção”, capazes de dizer “coisas substanciais, mas de forma tão precisa e livre de jargão acadêmico que desanima os glosadores e estrangula os discípulos no berço”. Seus modelos são, principalmente, Baruch de Spinoza e o romeno E.M. Cioran, de quem foi tradutor e amigo. O livro contém um rápido perfil deste último.

Nessa linha, Savater faz questão de cultivar o parentesco ancestral da filosofia com a literatura, e por isso dedica dois de seus melhores ensaios a H.G.Wells e a Voltaire. Sua mente privilegiada, nutrida por um vastíssimo repertório cultural, produz reflexões originais e profundas nas quais existe lugar para tudo o que possa fazer pensar com lucidez – não só os grandes autores de ontem e de hoje, mas também as histórias em quadrinhos e filmes normalmente desdenhados por intelectuais, como Tubarão e Jurassic Park, assim como os livros que lhes deram origem. Não chega ao cúmulo de equiparar tais livros a Kafka, mas defende reiteradamente a tese de que o puro e simples entretenimento tem um lugar importante na formação da sensibilidade e da inteligência.

A depender do contexto, tanto vale para o escritor citar uma das frases mais conhecidas de Blaise Pascal como contar uma piada. Esse ecletismo nada tem de superficial, e na armadura dos raciocínios savaterianos entram expressões não destituídas de valor poético, como “principado irrefutável da morte”. Entre as inúmeras autodefinições que semeia nos textos, a certa altura Savater chama a si mesmo de “alegre bufão”. E não são nada raras, no livro, evocações autobiográficas – da infância à repressão política praticada pela ditadura franquista.

Cada leitor achará, nessa primeira parte de Desperta e lê, seu texto preferido, mas um dos melhores candidatos é “A verdadeira história de Gonzalo Guerrero”, no qual se narra brevemente a vida desse colonizador espanhol que, vivendo com os maias no México, recusou-se a retomar sua cidadania espanhola e foi importante chefe militar na luta dos nativos para expulsar os invasores. De passagem, nesse ensaio Savater cita detalhes técnicos importantes para compreender a superioridade naval ibérica no início do século XVI, ligados à relação entre o velame das caravelas e o objetivo de viajar rapidamente em detrimento de transportar grandes quantidades de mercadoria.

Na segunda parte do livro, os textos são bem mais curtos, raramente chegando um deles a ocupar duas páginas. Agora, para completar o volume, o autor incluiu curtas resenhas e crônicas publicadas no jornal El País. Obviamente, esses textos não têm o mesmo alcance e profundidade dos anteriores, mas também neles é possível encontrar preciosidades do estilo de Savater, belas tiradas filosóficas e, principalmente, ótimas indicações de leitura. Entre as duas partes, há um “intervalo” intitulado “Afeições cinematográficas”, que, infelizmente, compõe-se de apenas oito artigos – seria bem interessante acompanhar mais longamente a aventura dum cinéfilo dotado de tamanho repertório cultural.

Merecem destaque, no restante do livro: o texto sobre James Boswell, considerado o inventor da entrevista jornalística e “algo como o pai do jornalismo cultural”; a crônica a respeito de um candidato à prefeitura de Bogotá chamado “Hitler Rousseau”; as lembranças do principal escritor argentino em “Com Borges, sem Borges”; e “O estranho caso do senhor Edgar Poe”, uma defesa do autor norte-americano contra a distorção de sua imagem pública tanto pelos detratores moralistas como pelo elogio feito por seu tradutor francês, o poeta Charles Baudelaire.

Em falta de melhor definição, chamaremos aforismos à série de frases e textos curtíssimos com que o autor fecha seu livro. Vale a pena acompanhá-lo na opção, encerrando nosso comentário com estes exemplos:

Detesto tanto esse tormento enfadonho chamado vida social que não estranharia se,

depois da minha existência pecaminosa, em vez de ir para o inferno me condenassem

um coquetel…

Pensar no tempo que passamos, uma manhã depois da outra, esfregando com uma escova

os dentes de nossa caveira.

E pensar que o interesse pela filosofia começa com o estarrecimento diante da morte

inexorável e conclui buscando bibliografia!

Título: Desperta e Lê
Autor: Fernando Savater
Gênero: Ficção | Drama
Ano da edição: 2001
ISBN-10: ‎ 8533613598
ISBN-13: ‎ 978-8533613591
Selo: Martins Fontes

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).