Enchente de chifres

Que país rural, meu Deus! Há quadrúpedes por toda parte.

(Samuel Beckett, em texto de 1951)

Senão primeiro, o goiano José J. Veiga foi dos primeiros escritores a reagir, por meio de uma obra literária, ao golpe militar de 1964. Sua novela A hora dos ruminantes (1966) é uma clara alegoria da captura do Brasil por interesses determinados a determinar o rumo político e econômico do país; a cidadezinha de Manarairema e seus habitantes vivem, no curto espaço de umas 100 páginas, dias de medo e apreensão que começam quando uma fazenda vizinha é ocupada por sujeitos vindos não se sabe de onde.

Alegorizar o golpe e seus efeitos sobre a sociedade brasileira foi um dos recursos mais comuns na ficção do período militar, especialmente depois que a censura foi, em 1968, institucionalizada como política de estado. Os invasores na novela, é claro, podem muito bem representar os interesses estrangeiros, especialmente estadunidenses, que comprovadamente estiveram entre as principais motivações do golpe, apesar da retórica oficial de que aquilo era uma “revolução” e de que os militares estavam “salvando o Brasil do comunismo”, retórica que, recentemente requentada mais uma vez, foi capaz de engabelar significativa parcela da população brasileira. Em definição precisa, o crítico literário Roberto Schwarz chamou os anos subsequentes ao golpe de “momento crucial da Guerra Fria”.

Manarairema é uma localidade imaginária, assim como seria a Tiatiara de Sombras de reis barbudos (1972), do mesmo escritor, outra evidente alegoria da ditadura. A ambiência regional do relato nessa pequena cidade, assim como o emprego de expressões bem características do interior goiano, tanto no discurso do narrador como na fala de seus personagens, evidencia José J. Veiga como um aplicado discípulo de Kafka; afinal, tudo o que ocorre ali é rigorosamente verossímil, falta apenas a razão pela qual tudo ocorre. Sendo um mestre do diálogo e manejando com destreza do tempo narrativo, o escritor cria um clima capaz de convencer o leitor de que sua crônica de invasão de Manarairema é perfeitamente crível.

Afinal, nada de tão estranho se dá com o comportamento dos habitantes locais. Eles fazem tudo o que pessoas normais fariam se deparassem com um episódio semelhante. O carroceiro Geminiano, o vendeiro Amâncio e o carpinteiro Manuel Florêncio, por exemplo, a princípio se recusam a cumprir as ordens vindas dos “homens” que haviam ocupado um terreno e começado a fazer obras, ali bem à vista da população da cidadezinha. As lacunas que se pode observar, como o fato de o proprietário do terreno não aparecer para reclamá-lo, podem perfeitamente ser preenchidas pela imaginação do leitor. A propósito de nomes de personagens, José J. Veiga comete aqui um Dildélio e um Nelório, “parentes” do Tenisão de “A ilha dos gatos pingados”, primeiro conto de seu livro de estreia, Os cavalinhos de Platiplanto (1959): ele gostava de criar nomes esquisitos que resvalassem pelo humor em meio às situações dramáticas de opressão, bem características de seus enredos.

A cidade aos poucos se dá conta da presença dos estranhos, e eles não dão a mínima bola aos habitantes: não cumprimentam, não procuram estabelecer nenhum tipo de relação – ao menos em público. O primeiro sinal de que algo mudou é a rendição do carroceiro Geminiano, que a princípio se recusara a trabalhar para “os homens” e, em pouco tempo, coloca-se à disposição deles em tempo integral para fazer viagens de areia a ser usada nas construções em torno da “tapera”, como é designada a casa velha e abandonada que eles haviam ocupado. Mais do que isso: aplica-se em convencer alguns concidadãos de que algo muito ruim poderia ocorrer-lhes se não acatassem as ordens dos novos senhores. Sim, porque aos poucos vai ficando claro que os habitantes de Manarairema se tornaram reféns de um estranho poder, manifestado apenas por meio de ordens e recados.

Mas o domínio dos “homens”, que no primeiro terço da narrativa apenas pairava como ameaça sobre a cidade, ganha uma expressão bem mais dramática no capítulo “O dia dos cachorros”, no qual se dá a invasão de Manarairema por centenas ou milhares de cães, os quais tornam impossível qualquer tipo de vida normal, prendendo as pessoas em suas casas e transtornando todas as atividades diárias, embora sem ameaçar fisicamente ninguém. Assim como vieram, num belo dia eles vão embora, não sem ter atordoado por muito tempo a cidade.

A segunda onda é semelhante, mas bem pior. Em “O dia dos bois”, os ruminantes são em tal número que chegam a impedir totalmente as pessoas de sair de casa, provocando falta de água e de alimentos, a tudo empestando com o cheiro de sua urina e fezes em enormes quantidades. Quando todos já esperam a morte, quando já não resta qualquer esperança, em certa madrugada os bois abandonam Manarairema, deixando tanta sujeira e estragos que só muita chuva, trabalho e tempo seriam capazes de limpar e reparar. Logo em seguida, todos ficam sabendo que “os homens” também haviam desertado da tapera.

A normalidade havia tornado à cidadezinha? Parece que anos recentes de nossa história, além de terem demonstrado a que ponto estava enganado quem pensasse assim, também confirmaram o livro de José J. Veiga como, mais do que apenas um anúncio sombrio do que seria a ditadura, a profecia de quão devastadores seriam seus efeitos ao longo do tempo. Por cima de tudo, a técnica narrativa e a elaboração de linguagem do livro são exemplares de que a excelência de um texto literário não depende de piruetas verbais ou ideológicas, mas sim do velho e bom senso de proporção.

O pior de tudo é que um novo mar de guampas, mais literal e menos alegórico, começou a invadir o espaço mental brasileiro justamente quando pensávamos que a ditadura havia sido derrotada. Hoje, os ruminantes mugem por todo lado, e não dão nenhum sinal de que pretendam desaparecer. Em certos momentos, é difícil evitar o pensamento de que o país virou um imenso curral.

Título: A hora dos ruminantes
Autor: José J. Veiga
Gênero: Romance
Ano da edição: 2015
ISBN-10: ‎8535925376
ISBN-13: ‏ 978-8535925371
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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