A mágica da simplicidade aparente

O argentino Mempo Giardinelli, nascido em 1947 na cidade de Resistencia, capital da província de Chaco, é um daqueles escritores imprescindíveis a sua sociedade. Não só produziu uma bela obra literária, composta de duas dezenas de livros de ficção – contos e romances –, mas tem sido um combatente pela justiça social e pelo direito à leitura. Mempo, ao contrário dos autores enclausurados no seu próprio fazer literário, encontrou tempo para tocar a revista Puro Cuento (1986-1992), na qual escreveram os mais destacados ficcionistas latino-americanos, e para ser um animado promotor da leitura literária no interior da Argentina, experiência relatada no livro Voltar a ler – Propostas para ser uma nação de leitores (2007).

Luna caliente (1983), sua obra mais conhecida no Brasil, foi traduzido ao português por Carlos Faraco. É um sucesso de público e, por suas qualidades excepcionais como narrativa, foi adaptado para o cinema e a televisão. Essa facilidade para falar ao leitor comum e ao público mais afeito à narrativa visual se explica pela maestria com que Mempo estrutura o enredo e maneja seus elementos numa escrita enxuta e de funcionamento preciso.

A história começa por um estupro e por um presumido assassinato. Ramiro, o protagonista, é aparentado aos personagens principais do conto “Coração delator”, de Edgar Poe, e do romance Crime e castigo, de Dostoiévski. Tendo violentado uma menina de 13 anos, ele hesita entre o arrependimento e o orgulho pela “façanha”, já que logo em seguida ao crime se empenha para sair impune. É por meio de sua consciência dividida entre o autoestranhamento e o instinto de sobrevivência que o leitor enxerga os acontecimentos, um truque muito eficaz do narrador.

Araceli, a vítima, deveria ter morrido por asfixia. Convencido de que isso havia ocorrido, Ramiro planeja uma fuga durante a madrugada; seu plano é atravessar a fronteira para o Paraguai, não muito distante da cidadezinha de Fontana, onde havia perpetrado o crime, e talvez chegar à Bolívia ou até mesmo à Amazônia brasileira. Araceli também tem seu parentesco na tradição literária moderna: é muito parecida com a provocante garotinha de Lolita (1955), romance de Nabokov também transposto para o cinema. Na literatura brasileira, lembra a moçoila do livro Presença de Anita (1949), de Mário Donato – não por acaso, transposto em forma de minissérie televisiva pela Rede Globo, a mesma emissora que importou a trama de Luna caliente.

O crime de Ramiro tem uma circunstância agravante que ainda o torna mais execrável aos olhos do leitor: Araceli é a filha de um grande amigo do falecido pai do protagonista. Ramiro se aproveita da confiança de que desfruta e, simulando um defeito no automóvel, consegue ser convidado a pernoitar em quarto vizinho ao da vítima. Ele tem 32 anos e acaba de voltar de uma longa temporada em Paris com um doutorado em Direito (!) e cheio de prestígio na modesta capital do Chaco, onde mora com a mãe e uma irmã.

A partir desses dados iniciais, apresentados nos três primeiros capítulos, desenvolve-se uma trama que toma direção surpreendente. Quando Ramiro está prestes a fugir, aparece-lhe à janela do carro o pai de Araceli, um médico que vive bêbado. Dessa cena em diante, o romance ganha um ritmo de história de aventura e, mais adiante, de narrativa policial. “Um homem no limite é capaz de tudo”, reflete o protagonista, que, obrigado a dar uma carona ao pai de sua vítima, começa a maquinar um jeito de livrar-se dele. Afinal, precisava chegar à fronteira paraguaia antes do amanhecer.

O tempo todo, Ramiro coloca na lua do Chaco a culpa por seus atos, reprovados pela consciência logo depois de serem cometidos. “Lua quente”, é verdade, não soaria bem em português, daí o tradutor ter optado por manter o título original. Isso não explica, porém, manter o termo espanhol “carretera” em uma passagem e traduzi-lo por “rodovia” em outra.

O narrador de Mempo, cuja perspectiva coincide com a de Ramiro, às vezes deixa transbordar um pouco de intelectualismo desnecessário à economia do enredo, mesmo à caracterização de suas personagens pertencentes, na maioria, a uma classe culta. O médico Braulio Tannembaun, que acaba assassinado por Ramiro, fica mais à vontade reclamando de ter ido acabar sua vida numa “vila de merda” do que ao discutir as teorias de Michel Foucault. O problema de ter de matar o pai por imaginar que havia matado a filha é a mola-mestra do enredo, uma espécie de tragicomédia de erros.

Em todo o périplo de Ramiro rumo à tentativa de fuga, ele reclama daquele “calor insuportável, persistente, que quase podia ser tocado”, ao qual associa sempre a lua do título. Em seguida ao cometimento do assassinato, que ele se esforça por tornar um crime sem rastros – e aqui nos lembra o protagonista do filme Rope, de Hitckcock, claramente inspirado no mencionado conto de Poe –, começa a sofrer da paranoia dos culpados, pois em tudo vê sinais de que está prestes a ser descoberto. Ao ser interrogado pela polícia, começa a ter a impressão de que o investigador Almirón dispõe de indícios concretos sobre a autoria do crime. Ao mesmo tempo, está convencido de que não deixou nenhuma evidência pelo caminho, e a essa crença se apega para continuar acreditando que sairá impune.

Há um elemento na trama de Luna caliente que, sendo dedutível da conhecida posição política do autor (Mempo escreveu o livro em seu exílio político no México), talvez intrigue mais certos leitores do que o próprio enredo policial: como entrará na história a ditadura militar argentina, regime sanguinário contra o qual o escritor lutou e que somente aparece, até o ponto em que estamos, por meio de referências críticas de uma ou outra personagem? No primeiro encontro de Ramiro com os investigadores, parece desenhar-se um protesto suave por demais: até um suspeito de homicídio tem moral para criticar o governo fardado que praticou o assassinato em massa de opositores como política de Estado – será só isso?

A crítica do autor ao regime militar virá inteira na voz do próprio chefe de polícia, um indivíduo cuja aparência civilizada não esconde sua condição de torturador “pret-à-porter”. Ele oferece a Ramiro a impunidade em troca de uma simples confissão, admitindo com franqueza que não era problema alguém ser culpado de assassinato, desde que fosse alguém “do nosso lado”. Essa é uma fala que vale a pena transcrever, pois concentra toda a carga política do romance:

(…) Tudo o que tem de fazer é confessar e garanto que se safa dessa, sai
inteiro. Eu ajeito, e depois falamos. Porque estamos empenhados num
processo de longo prazo, veja se entende. Um processo no qual o verdadeiro
inimigo é a subversão, o comunismo internacional, a violência organizada
mundialmente. Nosso objetivo é exterminar o terrorismo para instaurar uma
nova sociedade. E se lhe peço para confessar é porque também devemos nos
ocupar de outros crimes, qualquer que seja a causa, pois precisamos construir
uma sociedade ordeira. Trata-se de uma ordem na qual não podemos permitir
assassinatos, e menos ainda cometidos por pessoa que pode ser nossa amiga.
Além disso, um assassinato é uma falta de respeito, é um atentado à vida. E a
vida e a propriedade são tão sagradas quanto o próprio Deus. (p. 95)

O trecho fala por si. Talvez seja pouco para um leitor interessado em denúncias panfletárias, as quais até podiam ter sentido no momento de urgência que foi o período ditatorial argentino, por sinal bem mais curto que o brasileiro. Em um livro escrito durante a agonia do regime, a estratégia textual adotada funciona melhor como corpo-de-delito. Em um escritor como Mempo Giardinelli, a cicatriz histórica não pode ser evitada mesmo num romance policial, e este é quase um livro desse gênero, porém com ênfase no drama individual do protagonista. O que interessa é a jornada do estranho herói, que numa segunda oportunidade termina por, de fato, estrangular Araceli e finalmente foge para o Paraguai, aí assumindo de vez sua marginalidade, não sem lamentar a oportunidade perdida de tornar-se um ilustre homem da ditadura.

A narrativa de trágicas paixões – e a da Lolita argentina, por mais misteriosa, bem que merecia um destaque maior nesta síntese – prevalece sobre a lógica da História, pela qual a maior probabilidade seria o protagonista acomodar-se à oportunidade que lhe oferecia o regime corrupto. Nesse sentido, o amor obsessivo da menina por Ramiro recai sobre o destino deste como uma espécie de salvação pelo avesso, impedindo ao protagonista recair um gênero de corrupção que seria ainda pior do que rebaixar-se de sua condição burguesa à de assassino comum. Um modo estranho de denunciar a ditadura, pode-se admitir, mas o desfecho fantástico do romance invalida qualquer conclusão e transforma a ninfeta em inesperada alegoria a impor a releitura de um relato que havia chegado a parecer óbvio.

Título: Luna Caliente
Autor: Mempo Giardinelli
Gênero: Romance
Ano da edição: 2012
ISBN-10: ‎8581300391
ISBN-13: 978-8581300399
Selo: Geração Editorial

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).