Camilo Lelis Jota Pereira¹
Historicamente, a educação brasileira passou por dois grandes momentos: um período de restrição, caracterizado pela escassez de escolas e projetos educacionais, seguido por um otimismo pedagógico a reboque do enfrentamento da falta de acesso mediante a ampliação das vagas. As transformações econômicas e a esperança no “país do futuro” condicionam uma compreensão de escola que vincula economia com educação, arraigado na crença de que a escola é o caminho para o progresso econômico e para a superação das desigualdades sociais. A disputa pelo “mercado” dos educáveis promove uma educação presa à lógica da maximização dos lucros e favorece uma prática pedagógica muito voltada para a formação de indivíduos produtivos e trazendo a questão dos empreendedores como a competência central do processo educativo. Desse cenário várias tendências pedagógicas se fortaleceram criando uma espécie de escola motivadora, democrática, humana, na qual todos pudessem aprender, desde que os métodos e processos fossem efetivamente centrados no aluno.
A questão mencionada acima não é a análise da história escolar brasileira, mas visa ilustrar a dinâmica de uma abordagem pedagógica que procura sistematicamente identificar problemas e propor soluções com base em uma compreensão de mundo que presume decifrar os problemas presentes como modo possível de encontrar soluções definitivas. Para além desse ímpeto, temos uma situação paradoxal: embora pretenda ser crítica, centrada no aluno e transformadora, a educação acaba reproduzindo um modelo normativo que acredita na possibilidade de uma correção total e definitiva das adversidades da vida, como se a superação dos desafios educacionais e, por consequência, os desafios sociais, depende-se de estar politicamente certo no campo da luta política.
Uma vez que a vida é intrinsecamente complexa e cheia de incertezas, avessa a qualquer versão do paraíso ou de paz perpétua, a crítica de Nietzsche a esse modelo, o qual podemos chamar de “otimismo pedagógico”, nos leva a uma desconfiança interessante em relação a qualquer tentativa de simplificação totalizante em educação. Isso porque a dificuldade e a incerteza como partes integrantes da existência sugerem que a educação deve se afastar da compulsão de decifrar e corrigir tudo; em vez disso, resta abraçar a complexidade e a incerteza, promovendo uma educação que valorize a dúvida, o questionamento e o enfrentamento dos desafios como oportunidades de crescimento e aprendizagem.
Neste sentido, as concepções de Nietzsche sobre o florescimento individual e social, bem como suas críticas às formas com a qual a modernidade impede tal crescimento, nos ajudam a repensar alguns pressupostos problemáticos que se infiltraram em nosso atual sistema de valores e ideais educacionais. Assim, sobre o que vale a pena lutar dentro de uma cultura de consumo de massa? O que significa educar bem em uma sociedade comprometida, em tese, com a igualdade, mas perversa em manter a opressão econômica e cultural? Como podemos levar uma vida comum significativa em um cenário existencial cada vez mais conectado, mas preocupantemente competitivo e beligerante?
O argumento desenvolvido neste artigo busca sugerir ao leitor e ao estudante alguns dos principais aspectos da filosofia de Nietzsche que acreditamos contribuir para a vida educacional, tomando como horizonte reflexivo o fortalecimento de uma sociedade livre e a consolidação das democracias multiculturais. Pois bem, nesse espaço gostaríamos de pontuar a crítica às tendências massificantes da vida moderna, que promovem a conformidade e a mediocridade em detrimento da autenticidade individual. Nietzsche vê as forças envolvidas na educação moderna como forças homogeneizadoras que suprimem a individualidade e promovem um comportamento de rebanho.
Essa tese dialoga com as preocupações educacionais contemporâneas através da concepção nietzschiana de florescimento individual por meio da autossuperação. No livro A Gaia ciência (1882), aforismo 335, Nietzsche fala diretamente aos seus leitores, atraindo-os para sua perto de suas reflexões com um irresistível “Nós” e exclamando: “Nós, no entanto, queremos nos tornar aqueles que somos – o novo, o único, o incomparável, aqueles que se dão suas próprias leis, que criam a si mesmos!” Mas o que isto significa para a educação? Para alguns intérpretes, essa passagem parece constituir os contornos de uma ética do individualismo radical. Ou seja, a educação deve promover currículos que permitam aos estudantes explorar e definir seus próprios valores, em vez de impor um conjunto rígido de normas, estimulando o pensamento crítico e a capacidade de questionar e desafiar o status quo, de modo a preparar os alunos para serem criadores de suas próprias “tábuas de valores”.
O interessante é que Nietzsche devolve todo o problema aos seus leitores. Agora cabe a você, o leitor, resolver o problema. Nossa educação forma “fingidores” posando de maneiras que apenas imitam a moralidade, como atores ruins em um filme de baixo orçamento que não tem um roteiro particular. Estamos “improvisando” o tempo todo enquanto educadores. Como criador de um novo engajamento transformador? Somos criaturas que contam e vivem narrativas, habitando um mundo onde nossas histórias estão inseridas em histórias maiores. A narração de nossa história revela sua coerência, sua arte, sua disposição ao perigo e às grandes conquistas, ou a falta dela. A responsabilidade educacional exige esse tipo de narração, pois nunca somos mais do que os coautores de nossas próprias narrativas.
Apenas na fantasia vivemos a história em que todos os problemas se resolvem. Na vida, estamos sempre sob certas restrições, condicionados pela própria finitude e por forças que nos fogem. Entramos em um palco que não projetamos e nos encontramos parte de uma ação que não foi de todo nossa criação.
A promoção da autossuperação por Nietzsche equivale, portanto, não apenas a uma ética da autocriação autêntica, mas, a uma pedagogia de incessante “autorreformulação”. Ou seja, Nietzsche estaria lançando as bases para o desenvolvimento de uma teoria educacional radicalmente construtivista e pós-estruturalista. Em suma, a teoria da autossuperação pode parecer, em um primeiro olhar, uma ideia simples e comum para melhorar a educação contemporânea. No entanto, não podemos interpretar grosseiramente as intenções de Nietzsche. Isso porque a autossuperação nietzschiana não é uma afirmação solipsista do individualismo, nem é um endosso à autocriação e à recriação incessantes, mas é um chamado a nos tornarmos senhores de nós mesmos.
Podemos encontrar a chave para uma compreensão mais fina dessa doutrina em O andarilho e sua sombra (1878), no qual Nietzsche forja explicitamente uma ligação entre autossuperação e autodomínio: “Todos aqueles que não se têm suficientemente sob seu próprio controle e que não conhecem a moralidade como autodomínio contínuo [ Selbstbeherrschung ] e autossuperação [ Selbstüberwindung ] praticados nas grandes coisas e nas menores, involuntariamente tornam-se glorificadores de . . . aquela moral instintiva que não tem cabeça, mas parece consistir apenas de coração e mãos que ajudam. É, de fato, de seu interesse lançar suspeitas sobre uma moral da razão [ Vernunft ] e fazer dessa outra moral a única”
Ao destacar a importância do controle sobre si mesmo, Nietzsche enfatiza a necessidade de um tipo de moralidade que seja resultado de uma escolha consciente e racional, em oposição a uma moralidade baseada apenas em sentimentos e inclinações automáticas. Ao mencionar “uma moral da razão”, ele está se referindo a uma abordagem moral que é fundamentada em alguma forma de reflexão, de domínio e de exercício do conhecimento daquilo que faz você ser quem é. O ponto é contraste com uma “outra moral” que parece ser apenas um reflexo de emoções e impulsos, sem nenhum estilo.
Para Nietzsche, nossa tarefa central é aproveitar e expressar nossas pulsões internas voláteis e em busca de poder de maneiras que realizem a excelência humana. Esse aproveitamento disciplinado e expressão das pulsões é o que Nietzsche pensa constituir uma vida individual poderosa e florescente, e é precisamente o que Nietzsche parece ter em mente quando nos convida a pensar a educação: uma forma democrática de estabelecer prioridades e respeito a diversidades, no qual as pessoas se preocupem em forma uma comunidade de espíritos livre.
Bibliografia:
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2002
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano II. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
Camilo Lelis Jota Pereira é filósofo e professor do Departamento de Ciências Humanas no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. Possui estudos publicados na área de filosofia da arte, educação e da obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.