A Retórica da Austeridade

Qual seria o propósito de cortar gastos públicos? Conter a evolução da dívida pública, certo?

Segunda-feira, 04 de maio de 2020

Dívida Líquida do Setor Público (% PIB) – Setor público consolidado- Interna e Total

Fonte: BCB

Como podem, então, coexistir cortes de gastos e aumentos da dívida pública em paralelo? Após um longo período de contração, a proporção da dívida pública sobre o PIB – tanto interna, quanto total – começa a crescer em 2015, momento em que se iniciam cortes de gastos promovidos pela equipe do ex-ministro Joaquim Levy[1], ainda no primeiro ano do governo Dilma II[2][3]. A retórica da austeridade pouco se alterou com as posses de Temer e Bolsonaro. Ambos deram continuidade aos cortes, cada qual à sua maneira. Temer reduziu o número de ministérios[4], contraiu o volume de repasses[5] e instituiu o teto de gastos[6]. Bolsonaro reduziu o número de ministérios[7], passou ao superministro a responsabilidade de contrair outros tantos gastos[8] e encampou a reforma da previdência[9]. E a dívida continua crescendo.

Fato é que os impulsos recessivos do governo – ao cortar gastos – deprimem todo o sistema econômico. Um corte de gastos do governo é uma receita a menos para vários agentes privados, que repassarão o impulso recessivo aos demais. A organicidade do tecido econômico é complexa, mas o que é evidente é a prevalência do Estado como principal agente do sistema. Seus choques recessivos não apenas deprimem diretamente as receitas como também desestimulam qualquer investimento. Cortes de gastos levam a recessões. E recessões levam a quedas na arrecadação pública. A redução dos gastos é incapaz de conter a evolução do endividamento se as receitas não forem mantidas e ampliadas. A dívida seguirá se expandindo. E pior, recessões levam a novos gastos com o aumento da necessidade de medidas de proteção social e de financiamento às empresas com dificuldades.

A economia brasileira sofreu uma forte depressão em 2015-16, e segue praticamente estagnada desde então. Não houve significativa retomada, apesar da enorme capacidade ociosa instalada. Milhões de empregos formais se perderam. A massa de desempregados soma algo na casa de 13 milhões, já há algum tempo. Dentre os que tinham ocupações informais, algo entorno de 45 milhões estão sem trabalho e renda no momento. Estes dependem da circulação da atividade econômica, numa economia que patinava e que agora foi paralisada. E 60 milhões se enfileiram para receber o auxílio emergencial.

Ainda que alguns setores inovadores consigam auferir renda, o cenário geral, na economia real, é de uma depressão de proporções inéditas. O choque exógeno do Covid-19 encontra uma economia recessiva e vulnerável. É uma queda sobre uma queda.

 

21777 – Produto interno bruto per capita em R$ do último ano – Número Índice (2001=100)

Fonte: BCB

Conter os efeitos dessa crise, e organizar a retomada econômica: ambos implicam em gastos, que não cabem em um teto. Tampouco em orçamento excepcional. É a função própria do Estado no capitalismo contemporâneo, e que se verá repetida nas mais prestigiosas nações desse planeta. Saberemos bem executá-la, desde que cientes de que o baque será mais forte, caso o Estado se abstenha a hombridade de agir em prol dos brasileiros. Hombridade nos papeis, e não nas farpas.

Já estivemos em situação de guerra antes. A proposta de um orçamento excepcional de guerra já foi ventilada em 1944[10], mas a força das circunstâncias impôs a expansão dos déficits. Não cabe especular sobre qual instrumento usar. O instrumento é o dinheiro, rubricado como gasto público. Novos recursos podem ser emitidos para comprar os títulos do Tesouro Nacional dos interessados em vendê-los. E novos títulos serão emitidos, com vencimentos e rendimentos razoáveis, sempre que for necessário drenar de volta a liquidez. Ou isso, ou a lentidão, e a conivência com a barbárie.

O momento é de alimentar e fortalecer o SUS e definir um esteio para a retomada da economia. A precisão dos gastos é que determinará a trajetória do endividamento. Gastos que contenham os danos, e que posteriormente estimulem a atividade produtiva, reduzirão as pressões sobre a relação dívida/PIB.  Devemos sepultar as covardias do laissez-faire, e saldar os patriotas de nossa situação. Aqueles que estão na linha de frente, pondo a vida em risco, trabalhando dobrado, e muitos sem receber medalhas: os médicos, os enfermeiros, e os coveiros.

 

[1]https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2014/11/27/dilma-rousseff-nomeia-economista-ortodoxo-joaquim-levy-para-a-fazenda.htm

[2]https://www.correiodoestado.com.br/politica/governo-dilma-fara-cortes-de-r-699-bilhoes-anuncia-ministro/247567/

[3]http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/08/corte-em-repasse-do-governo-afeta-areas-de-pesquisa-afirma-unicamp.html

[4]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/05/16/primeira-medida-provisoria-de-temer-reduz-de-32-para-23-o-numero-de-ministerios

[5]https://g1.globo.com/economia/noticia/governo-anuncia-alta-de-tributos-e-corta-r-421-bilhoes-em-gastos.ghtml

[6]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/15/promulgada-emenda-constitucional-do-teto-de-gastos

[7]https://www.camara.leg.br/noticias/550465-medida-provisoria-preve-22-ministros-no-governo-bolsonaro/

[8]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/bolsonaro-faz-cortes-nas-areas-social-cultural-e-trabalhista.shtml

[9]https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/10/22/reforma-da-previdencia-entenda-ponto-a-ponto-a-proposta-aprovada-em-2o-turno-no-senado.ghtml

[10] ¨A nossa inflação provem em parte, do acúmulo de déficits fiscais, mas principalmente da necessidade de emitir para a compra de letras de exportação. São dois problemas separados. Para dominar o deficit fiscal eu sugeriria: o equilíbrio absoluto e garantido do orçamento normal, exclusive as despesas extraordinárias de guerra, com paralisação quase completa de obras em curso não destinadas à guerra e severo espírito de economia; um orçamento em separado das despesas extraordinárias de guerra, com a provisão de recursos, provenientes de aumento de impostos e de emissão de Obrigações de Guerra – Inflação e Economia de Guerra – 1944, Eugênio  Gudin, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – São Paulo.

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Autor: Patrick Fontaine Reis de Araújo
Professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas