Cheio de som e fúria

O narrador de A grande arte (1983) poderia dizer, como John Cage na “Conferência sobre nada” (1959), que não tem o que dizer e o está dizendo aí. Ou, então, poderíamos encarar o principal romance de Rubem Fonseca como a peça A cantora careca (1949), de Ionesco, na qual jamais aparece no palco qualquer cantora, muito menos uma que seja desprovida de cabelos. O fato é que o livro confirma o escritor carioca como grande ilusionista, sendo sua trama complexa (por excesso de informação) um exemplo de que o vazio existencial do Brasil no início dos anos 1980, quando a ditadura exalava seus últimos suspiros – para logo encenar, com Sarney e Collor, a volta dos que não foram –, era passível de aproveitamento numa grande alegoria.

Tudo começa com o assassinado de duas garotas de programa. O andamento inicial é o de um romance policial, a que o grande talento do autor para intercalar as informações mais diversas no discurso de seu narrador, especialmente por meio de diálogos ágeis e espirituosos, dá um charme adicional e, ao mesmo tempo, retira a tensão do mistério. A grande pergunta proposta pelo enredo, quem teria matado as moças, é logo diluída numa série de peripécias do advogado apelidado Mandrake, protagonista e narrador dotado de uma bizarra onisciência; peripécias contrapostas às de seu antagonista imediato, o assassino de aluguel Camilo Fuentes, boliviano.

Mandrake é a besta-negra ideal do atual macarthismo feminista. Deveríamos bani-lo do cânone por seu machismo impenitente e cínico, a exemplo do que fizeram com a Tia Nastácia e o Tio Barnabé. Mas A grande arte foi e tem sido, pelo contrário, um grande sucesso de vendas, catapultando o grande contista Rubem Fonseca à posição de escritor brasileiro mais célebre da década de 90, descontados os fenômenos de “autodesajuda” que foram sempre comerciais e nada mais. Em Rubem Fonseca há qualidade literária, por mais que seus romances sejam inferiores aos brilhantes contos – nem todos, obviamente – reunidos em Feliz ano novo, O cobrador, Romance negro e diversas outras coletâneas.

Sendo um “grande advogado” metido a James Bond caboclo, Mandrake empreende sua tortuosa investigação dos assassinatos, que se emaranha em seus amores e o leva a tornar-se (em uma única noite!) versado na arte de assassinar pessoas com  preciosas facas acessíveis apenas a colecionadores. O plano é vingar-se dos bandidos que quase o mataram e seviciaram sua principal (porque ele tem várias) namorada.

No caminho de Mandrake até o desfecho se metem umas três dezenas de personagens, um terço das quais morre por conta de certa fita de videocassete que, no final das contas, não continha imagem alguma. No meio dessa pequena multidão, há um excesso de indivíduos mais inteligentes e cultos que a média dos seres humanos, entre eles o próprio narrador fodástico e o anão preto Zakkai, que parece dotado de superpoderes mentais, embora tenha a mania de fazer citações inexistentes. O Wit onipresente é um grande atrativo e um enorme defeito do livro, bastante agravado depois em Buffo e Spallanzani (1986) e Vastas emoções e sentimentos imperfeitos (1988).

A grande arte de Rubem Fonseca é prender a atenção do leitor, exceto no início chatíssimo da segunda parte do livro, intitulada “Álbum de família”. No final esse trecho enfadonho acaba se justificando, porque ajuda a explicar a participação, na trama, de Thales Lima Prado, milionário que termina como o principal suspeito de haver matado as duas moças e desenhado, com a ponta da uma faca, a letra P em seus rostos. Nenhuma das qualidades do romance, porém, elimina a excessiva leveza das caracterizações psicológicas, que deixa os personagens perigosamente próximos do nível das histórias em quadrinhos. Mesmo assim, A grande arte é bem mais interessante que o primeiro romance do escritor, O caso Morel (1973), que tinha pretensões pouco defensáveis a experimento vanguardista.

Pode-se ler o romance de diversas maneiras, entre elas como crítica do vazio espiritual da sociedade brasileira da época, o qual, como se sabe, não melhorou muito com uma redemocratização azeitada por barganhas de votos no Congresso em troca de concessões de rádio e TV, entre mil outros negócios traduzíveis como pura e simples apropriação de bens coletivos por algumas dúzias de espertalhões. Mais amplamente, e isso é mais coerente com o cinismo do narrador fonsequiano, A gande arte pode ser interpretado como nova demonstração ficcional daquilo que o protagonista de Macbeth, lá no século XVI, dizia ser a essência da vida humana: “um conto contado por um tolo, cheio de som e fúria e significando nada”.

Depois desse livro, Rubem Fonseca escreveu vários outros romances e continuou sendo um dos principais contistas brasileiros do século XX.

Título: A grande arte
Autor: Rubem Fonseca
Gênero: Romance | Suspense
Páginas: 536
Ano da edição:
ISBN-10: 8520924557
ISBN-13: 9788520924556
Selo: Nova Fronteira

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.