Pesquisadora investiga o impacto da Lei de Cotas na mudança do perfil de ingressantes em universidades e identifica vivências transformadoras de estudantes cotistas e não cotistas

Quando o campus da UNIFAL-MG em Poços de Caldas foi instalado no ano de 2009, não havia ações afirmativas na Universidade. Foi a partir de 2012, com a implantação da política de reserva de vagas, que os estudantes passaram a ingressar na Instituição pelas ações afirmativas. Acompanhando esse processo desde o início, Kênia Eliber Vieira, técnica em assuntos educacionais do campus, observou o quanto o perfil dos estudantes foi se modificando ao longo dos anos.

O tema despertou o interesse da servidora a ponto de motivá-la a investigar o impacto da inclusão dos estudantes por cotas na UNIFAL-MG. Assim, Kênia Vieira, bióloga de formação, partiu para o Mestrado Interdisciplinar em Educação, Ambiente e Sociedade, pelo Universitário das Faculdades Associadas de Ensino (UNIFAE), em São João da Boa Vista, defendido em 2016, aprofundando a pesquisa intitulada “Justiça de cotas na universidade e competência moral”.

Mas não parou por aí. A pesquisadora seguiu para o doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, pelo Instituto de Psicologia da USP, no qual desenvolveu a pesquisa “Julgamento de Justiça e Injustiça de Cotas na Universidade: impacto da empatia, da autopercepção e de um dilema de cotas”, estendendo o escopo do trabalho também para a universidade estadual. A defesa aconteceu no mês de agosto. 

Neste ano em que a Lei nº 12.711, a Lei de Cotas, completa 10 anos, a pesquisa da servidora aponta as vivências de estudantes cotistas e investiga o perfil de quem é favorável e quem é contrário ao sistema de cotas. O trabalho ganhou notoriedade no Jornal da USP, no mês de setembro, e foi indicado ao Prêmio Capes de Tese para a edição de 2023.

A seguir, confira entrevista concedida por Kênia Eliber Vieira à equipe de comunicação. 


Como a pesquisa “Julgamento de Justiça e Injustiça de Cotas na Universidade: impacto da empatia, da autopercepção e de um dilema de cotas” foi desenvolvida?

Kênia Eliber Vieira: A tese foi dividida em três estudos, desenvolvidos no período entre março de 2018 e agosto de 2022, com defesa em 19/08/2022. O primeiro estudo, intitulado ‘Experiências Individuais, Sociais e Raciais com Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras: Revisão de Escopo’, teve o objetivo de identificar, analisar e sintetizar a literatura existente sobre experiências individuais, sociais e raciais do público envolvido com as ações afirmativas no ensino superior. O segundo abordou a ‘Adaptação Brasileira e Evidências de Validade do Self-Perception Profile for College Students’ com a proposta de adaptar e verificar as evidências de validades psicométricas da Self-Perception Profile for College Students – SPPCS, para a realidade brasileira. No terceiro, o estudo foi sobre ‘Percepções sobre o significado das cotas na universidade e sobre a convivência entre cotistas e não cotistas’, no qual busquei investigar o papel da empatia, do perfil de autopercepção e da avaliação de um dilema nos julgamentos de justiça e injustiça das cotas e o papel moderador do tipo de ingresso e sexo nessas relações.

Como surgiu a proposta de abordar o dilema da questão do ingresso de cotas?

Servidora desde a implantação do campus Poços de Caldas em 2009, numa época em que ainda não havia política de reserva de vagas, Kênia Vieira conta que observou o quanto o perfil dos estudantes foi se modificando ao longo dos anos, o que a motivou a pesquisar o tema. (Foto: Milena Simão/Dicom)

Kênia Eliber Vieira: Desde o mestrado, trabalho com essa temática de pesquisa. No mestrado, investiguei a relação da justiça de cotas e a competência moral, com o objetivo de investigar o papel do desenvolvimento moral nos julgamentos a respeito dessa política. Foi nesse momento que propomos um instrumento de avaliação que contava com um dilema relacionado a cotas e com argumentos relacionados à justiça e injustiça de cotas. O dilema apresentava uma situação na qual um estudante de escola pública obteve nota suficiente para ingressar no curso de sua preferência, utilizando as cotas. Já outro concorrente, de escola particular, não conseguiu ingressar na universidade, pois não teve nota suficiente para ingressar pela ampla concorrência. Os 07 argumentos relacionados à justiça de cotas foram elaborados a partir de noção de justiça social com a distribuição por equidade. Já os 07 argumentos que tratam da injustiça foram pautados na justiça formal, com questões a respeito do mérito e de princípios de igualdade. Esse mesmo instrumento foi validado e utilizado no doutorado, para investigação do impacto da empatia, da autopercepção e do julgamento desse dilema na escolha por argumentos favoráveis e contrários às cotas.

Qual a relação da escolha do tema com a UNIFAL-MG?
Kênia Eliber Vieira: Iniciei minhas atividades na UNIFAL-MG no DRGCA [Departamento de Registros Gerais e Controle Acadêmico] do campus Poços de Caldas em 2009. Não havia ainda ações afirmativas na Universidade. A política de reserva de vagas teve início em 2012, em cumprimento à lei 12.711/2012. A mudança no perfil dos estudantes no campus foi evidente, pois os cursos oferecidos são de Engenharia. O campus mudou e a diversidade social e racial despertou em mim a necessidade de pesquisar a respeito de ações afirmativas.

Qual foi a metodologia aplicada no desenvolvimento da tese?
Kênia Eliber Vieira: O primeiro estudo, de revisão de escopo, foi guiado pelas cinco etapas estabelecidas na metodologia do Joanna Briggs Institute (Peters et al., 2020) e Tricco et al. (2018), para scoping reviews: (1) identificação do problema de pesquisa; (2) identificação dos estudos relevantes – novembro a dezembro de 2021; (3) seleção dos estudos – dezembro 2021; (4) extração dos dados – janeiro de 2022; e (5) coleta, resumo e relato dos resultados – janeiro a maio de 2022. O protocolo desta revisão de escopo foi registrado no Open Science Framework (https://osf.io/kmvc7/) e publicado por Vieira et al. (2022).

A busca nas bases de dados Scielo, BVS – saúde, LILACS, BVS-PSI, EBSCO, APA/PsycNet, MEDLINE/PubMed, ProQuest-ERIC, Web of Science, Scopus, Embase (Elsevier), com delimitação temporal dos últimos 10 anos, resultou na seleção de 46 artigos. Os resultados e discussões dos artigos foram analisados com o auxílio do software Iramuteq.

O segundo estudo foi a Adaptação Brasileira e Evidências de Validade do Self-Perception Profile for College Students. Foram realizadas as etapas preconizadas nos Standards (APA, 2014) para demonstrar evidências de validade de conteúdo, baseada na estrutura interna (análises fatoriais confirmatórias e exploratórias), em relações com medidas externas e no padrão de respostas.

No terceiro estudo, os instrumentos utilizados foram o Perfil de Autopercepção para Estudantes Universitários, a Escala Multidimensional de Reatividade Interpessoal (EMRI), o julgamento de um Dilema e um Questionário de Cotas que contem argumentos relacionados à justiça e injustiça de cotas. Participaram do estudo 1.032 estudantes universitários, sendo 62,2% do sexo feminino e 53,5% ingressantes pela ampla concorrência. Os resultados foram analisados usando modelagem por equações estruturais com partial least squares (PLS). Os efeitos moderadores de sexo e tipo de ingresso foram analisados pela Measurement Invariance of Composite Models (MICOM) e para identificação de classes latentes foi utilizada a técnica Finite Mixture PLS (FIMIX-PLS)

Quais os principais resultados apontados no estudo?

Kênia Eliber Vieira: No primeiro estudo, com a seleção de 46 artigos, foram identificadas quatro classes temáticas que tratavam das relações interpessoais, da representatividade, da identidade racial e das dificuldades e facilitadores da permanência no ambiente acadêmico.
Os resultados demonstraram que a convivência com a diversidade proporcionou a quebra das barreiras e estereótipos sobre os grupos de beneficiários das cotas e favoreceu transformações positivas na representatividade e na identificação racial e social. Revelou, através dos discursos dos próprios envolvidos com a política, estratégias e possibilidades que podem ser utilizadas como facilitadores para a permanência e bem-estar dos estudantes. Apresenta ainda, os principais dificultadores tanto institucionais, quanto sociais para a permanência do cotista.

Figura: Nuvem de Palavras das Palavras-Chave Reportadas nos Artigos Incluídos. (Fonte: Reprodução/Tese Kênia Eliber Vieira)

Para além da contribuição para a construção de evidências sólidas das experiências do da comunidade acadêmica com as ações afirmativas na universidade, esta pesquisa é de denúncia. Denúncia de enfrentamentos de preconceitos e discriminações raciais e sociais. A neutralidade e insensibilidade de professores, o racismo institucional materializado na falta de comprometimento com a diversidade cultural, social étnica/racial e a negação das desigualdades raciais, além das dificuldades acadêmicas, são relatados como geradores de sentimentos de desconforto, isolamento e inadequação. Entretanto, a possibilidade educacional, a resiliência, o apoio familiar e de grupos de apoio, o acolhimento de professores e ações e comprometimento institucionais se apresentaram na superação dessa condição inicial.

“Para além da contribuição para a construção de evidências sólidas das experiências do da comunidade acadêmica com as ações afirmativas na universidade, esta pesquisa é de denúncia. Denúncia de enfrentamentos de preconceitos e discriminações raciais e sociais”, afirma a pesquisadora Kênia Vieira.

No segundo estudo, de adaptação e validação psicométrica do Self-Perception Profile for College Students (SPPCS) para a realidade brasileira, fornecemos evidências de validade e propriedades psicométricas adequadas para mensurar a autopercepção e autoestima global dos estudantes universitários.
No terceiro estudo, utilizamos modelagem por equações estruturais e verificamos que a empatia e o julgamento do dilema de cotas como justo impactaram positivamente na avaliação de argumentos que tratavam da justiça de cotas e negativamente na injustiça. Isso significa que quanto maiores os níveis de empatia e quanto mais o dilema era considerado justo, mais os participantes escolhiam os argumentos favoráveis.
Como um dilema social, as ações afirmativas se apresentam como um conflito entre questões individuais e sociais que se materializou em julgamentos favoráveis ou contrários à política. Este estudo pode ser indicativo da gênese da resistência que é a não compreensão, no sentido afetivo e cognitivo, da noção de justiça distributiva por equidade e a centração em uma opinião pré-formada. Entretanto, o perfil de autopercepção impactou negativamente na avaliação de argumentos que tratavam da justiça de cotas e positivamente na injustiça, isto é, quanto maiores os escores de autopercepção, mais os participantes optavam pelos argumentos contrários às cotas. Como o perfil de autopercepção trata de avaliação de características individuais, ou seja, medidas sobre si mesmo, questões que tratem do outro e de questões sociais podem não ser percebidas como relevantes.

Segundo a autora do estudo, como um dilema social, as ações afirmativas se apresentam como um conflito entre questões individuais e sociais que se materializou em julgamentos favoráveis ou contrários à política.

Evidenciamos ainda, que cotistas tem maiores escores nos argumentos de justiça e estudantes de ampla concorrência nos de injustiça, ficando caracterizado o autointeresse no julgamento. Tais posicionamentos nos remetem ao interesse pessoal e social, se apresentando como uma dimensão motivadora, regulando o julgamento. Como os participantes da referida pesquisa eram estudantes de universidades que utilizam cotas para ingresso, o autointeresse pode ter sido ainda mais exacerbado, devido ao espírito de competição que marca os processos educacionais, principalmente no ensino superior. Foram ainda identificados dois grupos bem distintos e polarizados de participantes, que foram caracterizados como sendo favoráveis e contrários às cotas. Os favoráveis foram maioria dentro da amostra (992 participantes) e constituído por pessoas mais jovens e com maioria do sexo biológico feminino. Esse grupo julgou o dilema como justo ou totalmente justo e apresentaram maiores índices de empatia. O grupo de contrários (110 participantes) era composto em maioria de estudantes que ingressaram na modalidade de ampla concorrência em cursos de engenharia, de ciências exatas e de ciências agrárias, em média mais velhos, e do gênero masculino. O julgamento desse grupo com relação ao dilema apresentado é totalmente injusto, injusto ou um pouco injusto (59,1%) e apresentou menores índices de empatia.

Figura: Modelo Estrutural Gráfico. (Fonte: Reprodução/Tese Kênia Eliber Vieira)

Entendemos a complexidade das ações afirmativas e o quanto mobilizam o indivíduo e a sociedade em seus julgamentos. A preocupação com o outro e a consciência crítica das situações enfrentadas por alguns grupos excluídos são questões centrais para o julgamento dessa política, dada a noção de justiça distributiva que a sustenta. Este estudo contribui para a literatura ao considerar fatores individuais e sociais que impactem no julgamento de estudantes universitários a respeito dessa política pública. Ao revelar o significativo impacto dessas dimensões no julgamento das cotas, abre espaço para ações pontuais que possam contribuir para o desenvolvimento e a permanência no ensino superior.

Entre os relatos de estudantes cotistas, o que você encontrou de mais expressivo?
Kênia Eliber Vieira:
Na revisão de escopo, encontrei relatos de experiências de discriminação e dificuldades. Mas sobretudo os relatos de superação, que expressam a importância da educação (pessoal, social, econômica) e como essa oportunidade é geradora de transformações tanto no estudante cotista, quanto no não cotista e na comunidade acadêmica. Acesse aqui para conferir alguns relatos retirados do estudo. 

Como você vê a aceitação do ingresso às universidades por reserva de vagas nesse momento em que a própria lei completa 10 anos? Acredita ser algo que permanecerá ou ainda precisa ser revista e de ajustes?
Kênia Eliber Vieira: A aceitação das cotas ainda passa por uma questão bem delicada, o mito da democracia racial, que propõe que a discriminação teria um viés apenas social e não racial, tendo em vista a miscigenação. Entretanto, os dados sociais de emprego, renda, representatividade em algumas áreas de poder e privilégio, na educação superior, da população carcerária e outros recortes, evidenciam que o caráter racial é um fator decisivo na constituição social. Encontramos maior aceitação da política de cotas relacionada à questão socioeconômica (escola pública e baixa renda), porém com relação à vertente racial, ainda encontramos resistências na aceitação. Por isso esse debate deve ser constantemente promovido, para reconhecimento das diferenças raciais e para a tomada de consciência dos mecanismos de opressão. A luta pelo estabelecimento das cotas nas universidades partiu do Movimento Negro e depende da importância política desse movimento. Assim, as diretrizes políticas, assim como a abertura ao diálogo serão decisivas na continuidade da política. As ações afirmativas educacionais desempenham um papel inclusivo e de combate ao racimo estrutural que ainda é fortemente identificado. 

A reportagem do Jornal da USP menciona que a banca avaliadora indiciou a sua tese para edição 2023 do Prêmio Capes de Tese. Qual a importância dessa indicação para você, como pesquisadora, e para a própria área de conhecimento?

A banca avaliadora indiciou a tese da pesquisadora para edição 2023 do Prêmio Capes de Tese: “A indicação e os resultados da pesquisa me motivam no meu processo de continuação acadêmica a buscar novos caminhos para pesquisas, em consequência das inquietações trazidas por ela”, afirma Kênia Vieira.

Kênia Eliber Vieira: A indicação da banca ao prêmio Capes de Tese 2023 e os resultados da pesquisa me motivam no meu processo de continuação acadêmica a buscar novos caminhos para pesquisas, em consequência das inquietações trazidas por ela. Assim como iniciei esse caminho no mestrado, a motivação pessoal e social na investigação cresce a cada nova descoberta e na certeza de que estas evidências auxiliarão no processo de permanência dos estudantes cotistas. Está sendo um caminho de construção de evidências sólidas de facilitadores e dificultadores, que podem ser utilizados institucionalmente e avaliados por pesquisadores e educadores interessados nas possibilidades para novas práticas.
Para a área de conhecimento, muitos estudos tratavam da dimensão pedagógica e desempenho escolar, mas nessa investigação, propomos o estudo de questões psicológicas e sociais envolvidas no julgamento e a busca pelas vivências dos estudantes. Essa indicação é também um indicativo de que a área de psicologia escolar e do desenvolvimento humano pode contribuir para a construção de conhecimentos nas discussões a respeito da temática de ações afirmativas educacionais. Para além da preocupação com a efetividade da política pública, evidenciamos a preocupação com os indivíduos envolvidos nela. Quando estas questões ficam destacadas, há também uma tomada de consciência de práticas educacionais e intervenções específicas que podem contribuir para a saúde mental dos estudantes.


Conheça mais detalhes dos estudos da pesquisadora: 

O protocolo da revisão de escopo e alguns dados da pesquisa estão disponíveis na plataforma OSF:  OSF | Experiences with Affirmative Actions: A scoping review e foi publicado: Experiências individuais, raciais e sociais com ações afirmativas: um protocolo de revisão de escopo | Research, Society and Development (rsdjournal.org)

Dissertação de mestrado: https://www.fae.br/mestrado/action_busca.php?op=nome_aluno&word=K%C3%8ANIA%20ELIBER%20VIEIRA