No mínimo, previu o AI-5

Há muitas coisas que podem ser discutidas a partir da leitura de Pessach: a travessia (1967), arrolado por vários estudiosos como um dos livros mais representativos da ficção brasileira publicada sob o regime militar de 1964. O romance exemplifica os efeitos nocivos que a urgência de representar um momento histórico pode ter sobre a qualidade da literatura e confirma algumas das reconhecidas virtudes de Cony como escritor, mas também expõe defeitos que ele conseguiu evitar na maior parte de sua obra.

Da importância de Pessach… como protesto contra a violência política que se institucionalizava no país, da capacidade do autor de profetizar o surgimento de um Estado policial, que logo se tornaria indisfarçável com o AI-5, podem e devem falar historiadores e sociólogos. Como realização literária, o livro não passará muito dessa qualidade representativa; felizmente, se é que se pode usar tal advérbio com referência àquela ‘página infeliz da nossa história” – como a definiu Chico Buarque –, outros escritores conseguiram transformar em ficção de qualidade superior a mesma matéria-prima.

O romance está dividido em duas partes, e o contraste entre elas o constitui como obra literária. Na primeira, o narrador fala de suas atividades no dia em que completou 40 anos, cada uma delas ocupando um capítulo. Paulo Simões – originalmente Simon, sobrenome trocado para esconder a ascendência judaica – é um sujeito narcisista e cínico que encontra logo de manhã a amante, mais tarde a filha que vive num colégio interno, depois a ex-mulher e os pais idosos. Ao longo desse périplo, procura mostrar-se desinteressado de tudo que não o afete pessoalmente.

Mas Paulo, além de ainda encontrar depois seu editor, recebe em casa um amigo que pretende envolvê-lo na luta armada contra a ditadura. É claro que seu individualismo, estruturado discursivamente como ceticismo, descarta completamente tal ideia. Ocorre que, acompanhando o amigo militante, aparece uma moça magrinha e enfezada que se chama Vera, a qual ligará essa primeira parte à segunda e virará pelo avesso a vida do protagonista.

O título do livro é composto dos dois subtítulos. “Pessach” é essa primeira parte; a segunda se chamará, então, “A travessia”. O arranjo vem da explicação, que nos oferece o narrador, de que a palavra hebraica de antes é traduzida pela portuguesa que vem depois, remetendo à noite em que o povo hebreu abandonou o Egito sob o comando de Moisés. Paulo Simões, havia muito tempo, produzira um esboço de romance em que trataria da história de um judeu “traidor” de seu grupo étnico, escolha temática tanto mais explicável quanto o pai do narrador é obcecado pela previsão de uma nova Shoah (termo judaico para o “holocausto” nazista).

Na segunda parte, Paulo se vê envolvido na fuga de um grupo de militantes esquerdistas cujo carro deixa de funcionar subindo a serra em direção a São Paulo. Eles levavam um companheiro muito ferido, e Vera convence Paulo a emprestar seu automóvel para o socorro ao rapaz. Vera já havia complicado a vida do narrador ao amanhecer escondida no veículo, rogando ajuda para sair às pressas do Rio de Janeiro.

Aqui começa uma série de episódios pouco verossímeis redimidos apenas pelo desfecho, que demonstra ao menos bom conhecimento das ações militares típicas de uma guerrilha. Paulo acaba retido numa velha fazenda onde os guerrilheiros fazem seu campo de treinamento, tem seu carro “expropriado” pelo chefe do grupo para finalidades militantes, participa do enterro clandestino de um homem e envolve-se com a bela médica que aparece para cuidar dos feridos. Nessa parte do enredo, que ocupa um bom terço do livro, a qualidade da ficção de Cony fica pouco acima daqueles livros de espionagem que narram as aventuras de Brigitte Montfort, filha de Giselle, “a espiã nua que abalou Paris”. Além disso, Paulo Simões “entra dentro” e “faz” atitudes.

As ações do grupo guerrilheiro convergem para a fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, onde se planejava a ocupação de uma faixa de povoados, o que, na visão dos estrategistas da guerrilha, causaria a queda da ditadura. Nesse trecho há alguns diálogos de grande interesse teórico para quem ainda sonhe com a luta armada. Paulo, perdendo várias chances de escapar do grupo guerrilheiro, pelo contrário se integra a ele e termina protagonizando uma versão reduzida e trágica do exército Brancaleone. O mais interessante é o fato de as páginas finais, em cuja conclusão somente sobra ele mesmo (presumivelmente, para contar a história), serem a melhor porção do livro.

Mas certamente houve e haverá quem encontre em Pessach: a travessia altas possibilidades alegóricas.

Título: Pessach: A travessia
Autor: Carlos Heitor Cony
Gênero: Romance
Páginas: 336
Ano da edição: 2021
ISBN-10: 6556401501
ISBN-13: 978-6556401508
Selo: Editora Nova Fronteira

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.