Mais fumo do que flama

Não cabe dúvida de que tratamos de um livro desafiador. A grande questão é: até que ponto o desafio é um valor em si? Para começar, é discutível se O motor da luz (1994), do pernambucano José Almino, merece ser chamado de romance. Está assim definido em sua ficha catalográfica, mas… será?

Um romance é uma narrativa longa, e O motor da luz não passa muito das 60 páginas. Não seja esse o único critério, pois Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, tem praticamente a mesma extensão. Mas que diferença quanto à densidade e à coesão do enredo! Sem contar que a linguagem oswaldiana é repleta de insights deslumbrantes, forjados no encontro entre as técnicas de composição do Futurismo e do Cubismo.

Sim, Almino conta uma história, e também de maneira fragmentada. Só que cabe totalmente ao leitor descobrir que história é essa, vislumbrá-la nas possíveis ligações entre meia dúzia de personagens que reaparecem algumas vezes ao longo dos capítulos. A principal é Valdério, um parente do narrador, mencionado a propósito de episódios apenas esboçados, que dão conta de sua trajetória de militante político exilado e, depois da volta ao Brasil, assassinado. Há também um padrinho do narrador, cuja visão empreendedora em pleno sertão nordestino tem a ver com o título: o motor da luz é o gerador de eletricidade pertencente a um português na cidade cearense do Crato, a que se associa o dito padrinho para fazer funcionar um descaroçador de algodão.

Reminiscências familiares diversas poderiam ser agrupadas em torno desse elemento, mas elas ficam espalhadas sem cronologia pelos capítulos. Fica bem claro que a narrativa é, principalmente, obra memorialística, e não por acaso o narrador se identifica com a pessoa física do autor, um sociólogo com pós-graduação em Paris e Chicago, autor de uns poucos livros e candidato a “imortal” da Academia Brasileira de Letras.

O que impede José Almino de alinhavar seu relato de modo mais compreensível é, ao que parece, a pretensão estilística. Ele parece aspirar, antes de mais nada, à escrita refinada. Deve ser por isso que seus capítulos são alinhavados de citações, quase sempre literárias, muitas das vezes em inglês ou francês. Em cada um deles, retalhos de memória são puxados pela evocação de conversas com amigos e conhecidos em Paris, Nova York e Argel (o autor é filho do lendário Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, que esteve exilado na Argélia durante o regime militar de 1964).

Se prestar bem atenção, o leitor provavelmente terá a sensação de que foi esta a técnica de composição de O motor da luz: primeiro foram selecionados os trechos a serem citados, de extrações ilustres como Stendhal, Aragon, Camões, Baudelaire, Murilo Mendes, V. S. Naipaul. Enfileiradas, parece que as citações serviram de estopim para as reminiscências, depois costuradas com a evocação de conversas e com alguma porcentagem de ficção.

O problema é que o estabelecimento das conexões é um jogo que o autor joga sozinho, a não ser que o leitor se disponha a pesquisar a biografia de José Almino, tarefa que cabe mais a críticos literários com vocação para a arqueologia. Ou, então, a montagem mental do enredo estará apenas ao alcance de leitores muitíssimo inteligentes e cultos, o que tornaria o livro um tanto pernóstico.

Entre as parcas alegrias de ler O motor da luz está, por exemplo, reconhecer a inusitada coincidência de a búlgara Svoboda Lubenova, em conversa na cidade de Sófia, dizer a mesma frase do poema de Gonçalves Dias: “Meninos, eu vi”. Ou, charada de extração semelhante, o fato de o narrador mencionar obliquamente o poema “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto (“O seu nome era um dente, como aquele rio havia sido um cão.”)

Mas, então, a excelência do estilo seria o que de fato redime o livro, certo? Seria, se não ocorresse em certa passagem a suposição de que psicanalistas fazem “seções” com seus pacientes, deslize elementar depois confirmado por outros, até mesmo uma simples concordância errada.

Ao que tudo indica, há mais fumaça do que fogo em O motor da luz.

Título: O motor da luz
Autor: José Almino
Gênero: Romance
Páginas: 80
Ano da edição: 1994
ISBN-10: 8585490489
ISBN-13: 978-8585490485
Selo: Editora 34

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.