O pioneiro do regionalismo nordestino

A importância de A bagaceira (1928) se mede melhor quando a gente consegue, por exemplo, perceber em Vidas Secas (1938), obra-prima do regionalismo nordestino, sinais da influência daquele romance pioneiro, com que José Américo de Almeida procurou concretizar o programa do Congresso Regionalista do Recife (1926). O livro de Graciliano é muito superior, mas declarar essa obviedade não significa negligenciar as qualidades de A bagaceira.

O enredo evoca, com seus amores proibidos e mortes violentas, a tragédia grega. A linguagem compósita, por sua vez, recupera desde a prosa poética do Alencar de Iracema até a concisão telegráfica do estilo de Oswald de Andrade, passando pelo barroquismo e pela visada sociológica de Euclides da Cunha — não é por acaso que, em certa passagem, o narrador se refere a “contrastes e confrontos”, justamente o título de uma das obras do autor de Os sertões. E aqui está o problema: A bagaceira parece um quebra-cabeças montado com peças de vários jogos diferentes. As peças são, em geral, de ótima qualidade — apenas, não se encaixam.

Reduzida ao essencial, a narrativa dá conta de um drama que se passa no início do século XX no engenho Marzagão, cujo dono é Dagoberto Marçau (estranha grafia…), viúvo secarão cujo único filho, Lúcio, é um estudante de direito meio aluado. O rapaz passa uma temporada na propriedade, fazendo pausa em seu curso na cidade da Paraíba (hoje, João Pessoa), quando o pai, contrariando os próprios hábitos pouco solidários, aceita recolher no estábulo da fazenda uma família de retirantes da seca: Valentim, o filho adotivo Pirunga e a filha Soledade.

Já se pode adivinhar o desenvolvimento da trama: Soledade, a princípio destituída de graças além de uns olhos verdes embaçados, chega ao engenho com os sintomas da condição de retirante (magra, esfomeada, descolorida), mas em pouco tempo começa a recuperar suas graças, sendo bastante previsível que o sinhozinho se interesse por ela: no romance nordestino e na vida real, senhor de engenho era quase sempre sinônimo de pai-de-chiqueiro. Mas Lúcio é um temperamento romântico, não consegue decidir-se a tomar para si a moça. Enquanto os dois se tornam cada vez mais íntimos, vivendo pelos recantos solitários da fazenda, o povinho local deita falação, enquanto Soledade vai ficando cada vez mais bonita e provocante.

Além de tudo, perversa — acusa falsamente o feitor da fazenda (que ainda tem esse título, apesar de a escravidão haver sido oficialmente abolida) de ter-lhe dado presentes, o que induz Valentim a assassinar a desditada vítima da injúria. Adiante se descobrirá que o verdadeiro sedutor havia sido Dagoberto Marçau, com quem Soledade termina amasiada, mergulhando Lúcio no abismo dos amantes preteridos. A partir daí, os lances passionais se avolumam de tal maneira que os personagens principais, com poucas exceções, ou morrem ou são presos por assassinato.

Sobrou Lúcio, que havia muito tardiamente resolvido casar-se com Soledade: quando ela já se tornara amante do senhor de engenho. Quando o rapaz volta para apossar-se de sua herança, revela-se uma espécie de iluminista rural, a lembrar o Jacinto de Thormes do romance A cidade e as serras, de Eça de Queirós. Casa-se com uma moça da qual nem o nome é dado ao leitor saber, faz nela uma criança também anônima e aplica todo o seu saber, haurido na academia, a redimir o engenho decadente por meio da técnica e do pagamento de salários justos etc. Daí também saem as redenções jorgeamadianas.

Ainda sobra espaço para uma reviravolta nem tão surpreendente, pois Soledade, dada como morta após haver sido estrangulada por Pirunga, desde sempre por ela apaixonado, reaparece, outra vez fugida da seca e trazendo consigo, esfomeado e esquelético, o filho que esperava de sete meses ao ser “assassinada” pelo irmão de criação. Tudo muito romântico, mas sem a intensidade e a substância psicológica das melhores narrativas da safra oitocentista. As peças do enredo são bem imaginadas, mas dispostas de  modo pouco equilibrado, e a culpa de tudo talvez tenha sido da preocupação exagerada do autor de fazer estilo.

Há momentos brilhantes, por falar nisso, na escrita de José Américo. Ocorre que, além de conter exageros idealizantes como “farejando-lhe o almíscar virginal”, a linguagem refinada do narrador se choca com as suas pretensões explicativas. Em vez de deixar seus personagens viverem à vista do leitor, o romancista pretendeu quase sempre tutelá-los, apresentando a própria visão — unilateral — dos fatos e das motivações que os geram.

Assim, A bagaceira é uma boa história a respeito de um tema relevante e escrita em linguagem cheia de lampejos brilhantes. O único problema é que esses elementos não se casam entre si, resultando num conjunto em que a soma das partes não corresponde à dos valores individuais de cada uma delas. A “literatura do Norte”, proposta pela primeira vez por Franklin Távora (O Cabeleira) ainda no século XIX, teria que esperar por Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e José Lins do Rego para produzir seus melhores frutos.

 

Título: A Bagaceira
Autor: José Américo de Almeida
Gênero: Romance
Ano da edição: 2017
ISBN: 978-85-03-01299-7
Selo: José Olympio

Eloésio Paulo é professor da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.