O sorriso presidencial em cacos

A cruzada midiática atual para transformar Quarto de despejo (1960) num clássico da literatura brasileira prejudica sua valorização pelas qualidades que ele realmente tem. É uma obra de alta importância como depoimento e denúncia, mas isso não justifica o exagero de colocar sua autora no mesmo nível de escritores como Machado de Assis e Guimarães Rosa com suposta base em méritos muito ideológicos e pouco literários. A literatura é uma arte, e em arte conta antes de tudo o domínio de certas formas cujo padrão é dado pela tradição; achar o cânone “sexista” não tem o condão de reverter a História a nenhum paraíso perdido, pois paraíso não houve, muito menos paraíso intelectual. Pretender equiparar Quarto de despejo às obras-primas da literatura brasileira é o mesmo que guindar um pintor naïf à categoria de Van Gogh ou Monet: os termos da comparação, simplesmente, não são comensuráveis.

Carolina Maria de Jesus subintitulou seu livro de “Diário de uma favelada”, e é isso mesmo que ele é. Um diário feito da matéria bruta do cotidiano da autora entre meados de 1955 e o primeiro dia de 1960, descontadas as interrupções, algumas bem longas. E um diário cujas anotações, na maioria, falam do desespero de ver os três filhos passando fome, da revolta contra os donos do dinheiro e do poder, personificados principalmente no presidente da República à época, Juscelino Kubitschek, cuja imagem sorridente tem seu avesso no retrato mordaz da sociedade brasileira feito por uma catadora de papel que era preta e andava descalça, muitas vezes suja (ela mesma é quem o diz). A atualidade de Quarto de despejo precisará ser sempre lamentada, na medida em que o desamparo total ainda é a condição de milhões brasileiros, mesmo com as recentes políticas de redução da desigualdade, que tantos lamentam como estímulo oficial à “vagabundagem” enquanto consideram perfeitamente normais os gordos subsídios dados por governos a grandes empresários.

A luta de Carolina por comida é diária, e a insistência no tema tem um efeito cumulativo que não resulta de nenhuma técnica de escrita. Afinal, a autora é obrigada sempre a voltar ao mesmo tópico: num dia cata comida no lixo, no outro vende sucata de metal, vidro, papel e materiais diversos para conseguir alimentar a si e aos filhos; em outros dias, e muitos deles, simplesmente precisa dizer às crianças que não há comida no barraco que habitam, feito de madeira e coberto de papelão. Em meio a tanta miséria, o livro é “a maior invenção do mundo”, porque a leitura serve a Carolina como única diversão – antes de ela conseguir, não sabemos como, um rádio – e a escrita é sua catarse, traz algum alívio ao desalento de recomeçar toda madrugada o mesmo combate feroz e extenuante, cujo primeiro round é suportar a maledicência das outras mulheres que fazem fila em frente à única torneira disponível na favela Canindé, às margens do rio Tietê, na capital paulista. Essa comunidade, depois, foi arrasada para a construção da famosa avenida marginal.

A favela é, segundo Carolina, o quarto de despejo de São Paulo: aquele lugar de uma casa para onde vai tudo o que não tem serventia. No caso, centenas e centenas de pessoas sem lugar no mercado de trabalho e na sociedade. O que há de mais literário em Quarto de despejo não é o lamento constante da autora, mas seu relato, de técnica fragmentária e intuitiva, das vidas miúdas e sem esperança que a rodeavam. Vidas de pessoas que, com frequência, ela julga de modo excessivamente severo, pois não deixa de ser moralista, ocasionalmente violenta e até racista, além de praticar alguns dos atos que mais condena, como falar mal da vida alheia. Em vista disso, qualquer idealização do livro esbarra na inviabilidade de idealizar a narradora: sua sinceridade impede que o leitor deixe de ver-lhe os defeitos. E não existe má-consciência burguesa ou “lugar de fala” ressentido que possa servir de antídoto às confissões que fazem Carolina tão pouco recomendável como mártir feminista, pois a relação da autora com sua condição de mulher-objeto é ambígua: ela se dá a um cigano que é o perfeito cafajeste e a um português que às vezes lhe oferece dinheiro.

(Também parece que os panegiristas de Quarto de despejo esquecem que a autora faz uma imagem bem pouco lisonjeira de seus companheiros de miséria e professa, muito ingênua e contraditoriamente, a confiança irrefletida na vingança de um Deus infalível, mas que se importa mais com falhas morais individuais do que com a iniquidade social que talvez as motive, ao menos em parte.)

Mas o livro contém, por assim dizer, lampejos de literariedade. Eles derivam, provavelmente, do fato de Carolina ser uma leitora frequente – é uma pena que ela não nos diga o que lia, mas deviam ser livros ganhados de alguém ou achados no lixo – e também, é claro, de seu talento para a escrita. É de se imaginar que a escritora, caso tivesse tido maior acesso à educação formal, seria capaz de aprimorar a própria inteligência e sensibilidade. Daí a valorizar seu escasso entendimento da linguagem como recurso de estilo, vai um oceano de boa vontade. Como contraprova, a noção de poesia apresentada em algumas passagens do livro evidencia contato quase nulo com versos de qualidade.

Os mencionados lampejos não bastam, por exemplo, para promover o livro a romance. Ele guarda semelhanças com O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, mas foi escrito com objetivos marcadamente extraliterários: denunciar a situação dos favelados e render à autora dinheiro suficiente para tirá-la da favela. Ambos os objetivos foram atingidos, pois estamos a falar de Quarto de despejo mais de 60 anos depois de sua primeira edição, e Carolina chegou, graças à publicação do livro promovida pelo jornalista Audálio Dantas, a realizar o sonho de possuir uma casa de alvenaria. Escreveu, depois, outros livros, mas terminou seus dias no esquecimento e na pobreza, em 1977, depois de ver sua obra traduzida para 13 idiomas.

No conjunto, mesmo compondo um tocante balé de miséria e desamparo, os fragmentos de vidas e personalidades apresentados pela autora não chegam a resultar num enredo. É verdade que a mesma falta dele pode ser considerada o enredo daquelas vidas sem futuro; mas falta à autora o sentido profundo de interpretação do humano que faz de Hamlet, do Quixote, Divina Comédia, de Kafka – aos se pode comparar pouquíssimos autores sem temer a decepção – marcos inigualáveis da arte literária. Que esses clássicos da literatura mundial fossem homens, e supostamente heterossexuais, pode ser até motivo de lamento para alguns, mas a queixa jamais será capaz de catapultar um livro à condição de patrimônio da humanidade em virtude de particularidades da condição genotípica, social ou existencial de quem o escreveu. Longe da simples identificação anímica a indivíduos ou grupos, as maiores qualidades de Quarto de despejo estão ligadas à desmitificação de um suposto país otimista cujo ícone por excelência, na época, era o presidente da República.

O lugar de Quarto de despejo na literatura brasileira não se situa, em princípio, no mesmo escaninho dos escritores que se dedicaram à ficção com a inteira consciência do que ela significa. E não esqueçamos que Machado de Assis era descendente de escravos, apenas não teve necessidade de recorrer o tempo todo a essa condição como tema: preferiu corroer por dentro a ideologia da classe de que também havia nascido vítima. Quanto a Lima Barreto, cujo romance Clara dos Anjos seria outro parâmetro “canônico” – assim como O cortiço – para o livro de Carolina, viveu sua condição de marginal muito mais em função do alcoolismo do da cor de sua pele.

Vale muito a pena ler Quarto de despejo porque é um depoimento único e, de modo semelhante a Os sertões (1902), denuncia um Brasil que o próprio país insiste em ignorar. O que não vale a pena é gastar energia tentando transformá-lo no que ele não será.

Título: Quarto de Despejo
Autora: Carolina Maria de Jesus
Gênero: Ficção Literária
Ano da edição: 2021
ISBN-10: 8508196555
ISBN-13: 978-8508196555
Selo: Ática

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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