Divertida aula de história e política

Não fosse o excesso de didatismo, Erico Verissimo talvez tivesse feito sua obra-prima em Incidente em Antares (1971), conseguindo a difícil proeza de superar Caminhos cruzados (1935). Mas o último romance do escritor gaúcho – autor de uma das obras mais significativas da ficção brasileira moderna – é muito marcado pela preocupação de esclarecer politicamente o leitor, efeito explicável da época em que foi produzido: o ponto alto da repressão promovida pelo regime militar imposto ao país em 1964, cujos líderes tanto civis como da caserna participaram (houve notáveis exceções, como sempre) do alegre banquete da corrupção que, vinda do Império agonizante, foi entronizada no altar da política brasileira logo no início do período republicano e, como se sabe, de lá até hoje não foi apeada.

O incidente a que se refere o título é um protesto feito por sete defuntos. Antes de chegar a ele, porém, o escritor faz uso de seu estilo ao mesmo tempo espontâneo e preciso para criar o cenário: Antares é uma pequena (e imaginária) cidade gaúcha situada na divisa com a Argentina, bem perto daquela São Borja onde nasceu Getúlio Vargas, um dos personagens mais importantes do livro. O romance faz uma curiosa mistura de crônica histórica e realismo fantástico, como se Verissimo tivesse resolvido injetar um pouco do García Márquez de Cem anos de solidão (1967) em seu profundo conhecimento da história social e política rio-grandense, já bem demonstrado na monumental obra cíclica O tempo e o vento (1949-1962). Com certa licença teórica, pode-se dizer que Antares é a Macondo de Verissimo.

Ao relatar a formação da cidade, o narrador enfatiza a rivalidade entre os pioneiros das duas famílias que dominam a economia e a política locais, os Vacarianos e os Campolargos. Depois de um longo período de disputa, com mortes de ambos os lados, os dois clãs são reconciliados pela manha política de Getúlio, que convence os patriarcas a se apertarem as mãos. Disso resulta que, na época do “incidente”, os sucessores tenham substituído a disputa de poder pela amizade íntima, sendo que, do lado dos Campolargos, a inapetência de Zózimo para o poder havia tornado sua mulher, a voluntariosa Quitéria, na líder com quem Tibério Vacariano precisava entender-se nas horas de crise ou conciliação de interesses.

A Antares imaginada pelo escritor deve ter tido um modelo bem concreto, pois suas personagens são convincentes e representativas de quase tudo o que é possível existir, em tempos de comportamento humano, numa cidade interiorana. A galeria criada por Verissimo lembra aquela com que Eça de Queirós povoou Leiria em O crime do padre Amaro (1875): do professor homossexual (não assumido – e como poderia, na época?), sempre a exibir sua falsa cultura, às solteironas fofoqueiras, do músico frustrado ao jornalista venal, do bêbado em tempo integral à prostituta decaída, vão se perfilando e dizendo “presente” as figuras mais representativas da pequenez provinciana, tanto mais reconhecíveis quando menor a escala da cidadezinha que se quiser usar como contraprova.

Mas essa acanhada comunidade também reflete em modo reduzido a política nacional, o que é um dos grandes atrativos do livro. Assim, desde os tempos da política do café-com-leite até as vésperas do golpe de 1964, as vidinhas medíocres locais são pautadas pelo noticiário das capitais, ouvido no rádio ou lido com um dia de atraso em jornais trazidos pelo trem de Porto Alegre. Aqui retornamos ao problema do didatismo excessivo. Como exemplo dele, veja-se esta frase em que o escritor se serve da voz do padre Pedro-Paulo, chamado de “vermelho” pelos conservadores de Antares, para definir a acepção viciada que o pensamento de direita dava – e continua dando – à palavra comunista:

 – Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social. Por outro lado não ignoramos que na Rússia Soviética não existe nenhuma liberdade de crítica ou de expressão, e que um escritor pode ser condenado a três ou cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria por ter escrito poemas, artigos ou romances que contrariam ou simplesmente não seguem a linha política do partido único.

Como se vê, o trecho é proposidatamente caricaturesco. Incidente em Antares, até por estar cheio de passagens assim, é uma bela e necessária (para grande parte dos leitores de ontem e de hoje) aula de história e política. Esse modo didático contribuiu para tornar o livro um clássico, mas a exagerada concessão da estética à pragmática faz a balança pender demais para o lado da segunda, e não foi essa a única obra literária da época afetada pela urgência que muitos escritores sentiram de suprir, por meio da ficção e até da poesia, as informações proibidas e censuradas pelo regime militar.

Há também, para esgotarmos logo os senões do romance, pequenas inconsistências que geram algum déficit de verossimilhança. É o caso de o professor Menandro Olinda, figura interessantíssima, morar em apartamento numa cidadezinha do interior e no início dos anos 1960. Na mesma linha, seria muito improvável – mesmo dentro da lógica fantástica do relato – o militante João Paz, já defunto, sentir seu filho movendo-se na barriga da mulher. Menos convincentes ainda são algumas das perguntas feitas por Erotildes, prostituta morta no dia anterior, a sua colega de quarto Rosinha, a respeito de fatos que não havia como pudesse ignorar. Tais pequenezas, somadas, resultam num passivo capaz de empanar, ao menos em parte, o inegável brilho do romance.

É como crônica das fraquezas humanas e da hipocrisia social, numa chave bastante cristã e (por causa disso) tolerante, que ele tem mais graça. Desde suas origens, quando ainda se chamava Povinho da Caveira, Antares já era um desfile de pecados, quase uma versão expandida do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. É um dedo acusador, mas cheio de humor e piedade, que Erico Verissimo aponta a seus personagens. E, desses, um dos piores é o “coronel” Tibério Vacariano, que percorre a maior parte do enredo cumprindo com total coerência seu papel de tiranete de aldeia. Nem por isso se torna antipático ao leitor: Tibério é engraçado com sua fala sempre ranzinza e arrogante de quem não percebeu ou não admite a passagem do tempo; nas últimas páginas, mesmo fazendo pilhéria de sua própria impotência sexual, ainda escapa do leito de enfermo para fazer uma visita à prostituta Cléo, tomada como amante ainda mocinha, nos tempos em que ele era temido e respeitado.

Em consequência de uma greve é que o episódio macabro, mas também bastante cômico, se abate sobre a cidade. Os coveiros de Antares, em solidariedade aos operários de três indústrias, resolvem não sepultar as sete pessoas que, numa coincidência estatisticamente improvável, haviam achado de morrer todas no mesmo dia – precisamente, 12 de dezembro de 1963, enquanto o Brasil inteiro se agitava com os fatos políticos que precipitaram, meses depois, o golpe civil-militar do qual emergiu a mais longa e sangrenta ditadura da história brasileira.

Não havendo quem enterrasse os mortos, os caixões ficaram do lado de fora do cemitério, criando-se um impasse cuja solução recaía principalmente sobre os ombros do prefeito Vivaldino Frazão e do delegado de polícia Inocêncio Pigarço, este uma caricatura dos esbirros que torturaram e mataram tanta gente durante o regime militar. Ocorre que uma das mortas era a matriarca dos Campolargos, Dona Quita, e ela supostamente teria levado para a tumba todas as suas joias. Então, um gatuno resolve despojar a defunta e, abrindo o caixão, perde a viagem, pois não havia lá joia nenhuma, e foge assustado, deixando quieta a ilustre morta. Por algum motivo sobrenatural, Quitéria abre os olhos e, vendo que tinha companhia, resolve despertar os outros mortos. Aí começa a comédia macabra, a qual culmina numa assembleia iniciada sob o sol do meio-dia, com os cadáveres em adiantada decomposição, sentados no coreto da praça de Antares e rodeados por nuvens de moscas. Liderados pelo defunto-advogado Cícero Branco, eles reivindicam ser sepultados sem demora e começam a revelar, diante da cidade perplexa, a corrupção moral dos vivos: roubalheira, hipocrisia, adultérios, assassinatos e várias outras classes de façanhas reprováveis ou pecaminosas.

Dois dos defuntos, principalmente, assumem o papel de acusadores, e todos os podres de Antares vêm à luz, incompatibilizando muitos casais e desmoralizando a maioria das pessoas mais respeitadas da cidade. Logo depois, o impasse se resolve e os mortos vão em paz para suas covas. Mas o estrago estava feito. Resta, então, uma “operação borracha” em que se empenham todos os interessados no esquecimento do episódio. E Antares volta a seus hábitos antigos, ficando à espera do outro incidente – ao qual o escritor realmente deve ter pretendido referir-se –, a volta dos que não foram, ou seja, o assalto do poder por aqueles que, desde 1954, vinham conspirando contra a incipiente democracia brasileira. É muito oportuna, neste início de 2023, uma releitura do romance de Verissimo – e, para quem ainda não o conhece, muito recomendável a título de lazer instrutivo, como já preconizava o bom Horácio em sua arte poética.

 

Título: Incidente em Antares
Autor: Erico Verissimo
Gênero: Romance
Ano da edição: 2006
ISBN: 9788535907674
Selo: Companhia de Bolso

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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