Já falou Titia Simone: “Ninguém nasce mulher: Torna-se mulher” (Simone de Beauvoir)

Janaina de Mendonça Fernandes

O ideal seria que uma professora trans do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) estivesse escrevendo este texto. Mas, na ausência de uma mulher trans em nosso quadro de docentes do ICSA, escrevo essas linhas como aliada da causa e aguardo ansiosamente a chegada de muitas companheiras trans para que elas façam uso do seu local de fala e ocupem este espaço de poder dentro da universidade. Só temos a ganhar com a presença delas. Dito isso, vamos ao texto.

O que é uma mulher? Pergunta bem complexa que vários campos da ciência e diversos cientistas tentaram ao longo de décadas a fio responder. Não seremos nós nesta pequena reflexão que faremos isso. Mas, temos algumas pistas que podem nos levar a conclusões que ser mulher é muito mais que ter um corpo com características biológicas definidas, características essas que com avanço da medicina podem ser alteradas se assim desejarmos. De acordo com Simone de Beauvoir:

“[…] basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses e ocupação, são manifestadamente diferentes; talvez essas diferenças sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem com uma evidência total. Se a função de fêmea não basta para definir uma mulher, se nos recusamos a explicá-la pelo “eterno feminino” e se no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente que há mulheres na Terra, teremos que formular a pergunta: o que é uma mulher?” (BEAUVOIR, 1980, p.11, grifo nosso).

Essa pergunta é tão válida que em uma conferência pelo sufrágio feminino no Sul dos EUA, Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851, a ativista mulher negra Sojourner Truth proferiu a seguinte fala:

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?” (GELEDES, 2014)

Vejam que, na perspectiva de diferentes locais de fala, uma mulher vai muito além de um dado corpo biológico, perpassa a para além da existência física e atravessa a forma como nos inserimos no mundo, daí a fala de Simone de Beauvoir que dá título a esta pequena reflexão começa a fazer sentido. Ser mulher não consiste em ter uma genitália, ser mulher é algo que se interioriza ao longo da existência e que se performa diante da sociedade. Assim, como não dizer, como não constatar, como não afirmar e como não reconhecer que mulheres trans são mulheres? Mulheres trans são mulheres sim!

Para entender, recorremos então a Judith Butler (2003) que nos apresenta o fato do corpo como um processo de materialização, sendo o sexo anatômico uma forma de afirmar as normas regulatórias. Assim é um erro dizer que somos apenas corpos. Temos que nos entender em constante construção, fabricação, questionamentos e rupturas destas normas. Não existem corpos pré-definidos, unos e indiferenciados que se encaixem em tipos idealizados de “homens” e “mulheres”. Pessoas são efeitos de produção e reprodução de performances sociais que são por elas apreendidas e aprendidas ao longo de sua existência. Neste sentido, de acordo com Nascimento (2021): É preciso bagunçar as fronteiras entre a suposta naturalidade e artificialidade, uma vez que os corpos trans são tão artificiais quanto os corpos cis” (NASCIMENTO, 2021, p.129).

Se seguirmos esta linha de raciocínio chegaremos à conclusão de que a biologia não pode determinar a forma como performamos no mundo, a forma como nos inserimos na sociedade e que o fato biológico não determina quem é ou não é mulher, mas sim o que performamos e como nos determinados diante do mundo:

“Retirar das pessoas transgêneras o direito à auto-determinação de seus corpos é uma prática transfóbica frequente em discursos morais, religiosos e patológicos. Denunciar os privilégios cisgêneros é um modo de fazer com que as pessoas entendam o quanto nossos acessos a determinadas intervenções corporais são limitadas, ao passo que, para pessoas cisgêneras esse debate sequer é feito” (NASCIMENTO, 2021, p.142, grifo nosso).

Por falar em práticas transfóbicas, vale a pena, nesta pequena reflexão, lembrar que, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil está no topo do ranking de assassinato de pessoas trans no mundo:

“No ano de 2020, tivemos pelo menos 175 assassinatos de pessoas trans, sendo todas travestis e mulheres transexuais. Não foram encontradas informações de assassinatos de homens trans ou pessoas transmasculinas em nossas pesquisas esse ano. Reafirma-se a perspectiva de gênero como um fator determinante para essas mortes […] É importante ressaltar que a média dos anos considerados nesta pesquisa (2008 a 2020) é de 122,5 assassinatos/ano. Observando o ano de 2020, vemos que ele está 43,5% acima da média de assassinatos em números absolutos. O ano de 2020 revelou aumento de 201% em relação a 2008, o ano que apresentou o número mais baixo de casos relatados, saindo de 58 assassinatos em 2008 para 175 em 2020. Mesmo durante a pandemia, os casos tiveram aumento significativo de acordo com o publicado nos boletins bimestrais ao longo de 2020.” (ANTRA, 2020, p. 31-32)

Isso sem contar as diferentes violências vividas no dia a dia por mulheres trans, que vão desde o acesso a saúde, educação até a inserção no mercado de trabalho:

“A maior parte da população Trans no país vive em condições de miséria e exclusão social, sem acesso à educação, saúde, qualificação profissional, oportunidade de inclusão no mercado de trabalho formal e políticas públicas que considerem suas demandas específicas”  (ANTRA, 2020, p. 7)

Sendo assim, mais que sororidade e humanidade, reconhecer as demandas das mulheres trans, para além do dia 08 de março, é urgente. Essa pequena reflexão, além de apresentar dados que denunciam as violências por essas mulheres sofridas, aponta para a necessidade de políticas públicas específicas e para uma luta que devemos travar unidas dentro da sociedade. Como sabiamente falou Titia Simone: “Ninguém nasce mulher: Torna-se mulher” (Simone de Beauvoir)

Em tempo, uma conquista importante merece ser ressaltada: o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que se aplicava em casos de homofobia e de transfobia a mesma lei do Racismo (Lei n 7.716/1989). Lembrando que, no artigo 20 da lei 7.716/1989, há pena de um a três anos de reclusão e multa para cometer tais crimes.

Vamos à luta juntas!

Referências Bibliográficas:

ANTRA, 2020, https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf, p. 7 acesso em março de 2023

BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980.

BRASIL. LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GELEDES, 2014, geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/, acesso em março de 2023.

NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

 

Possui Graduação em Composição Paisagística pela Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998), Graduação em Administração pela Universidade Estácio de Sá (2018), Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e Doutorado em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas (2008), Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU/UFF (2016). Atualmente é professora do magistério superior da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), atuando principalmente nos seguintes temas: estratégia e governança, políticas públicas participativas e políticas migratórias de refúgio.