Força-tarefa a favor da empatia e da inclusão em sala de aula

Comunidade universitária se mobiliza para adaptar materiais didáticos e ajudar no aprendizado de estudante com deficiência visual

O semestre letivo de 2023 trouxe um desafio para professores e estudantes do curso de Ciências Biológicas (Bacharelado) da UNIFAL-MG: unir criatividade e solidariedade na adaptação de materiais didáticos a fim de diminuir barreiras e promover o aprendizado de um acadêmico com deficiência visual, recém-chegado à Universidade.

“Eu escolhi a UNIFAL-MG e esse curso porque eu quero ser professor de Biologia”, conta Mateus Soares. (Foto: Arquivo/Grupo de Apoio)

Mateus Souza Soares, de 21 anos, nasceu prematuro e com deficiência na visão. Natural do estado de Rondônia, foi criado pelos avós, tendo morado em São Paulo e também na cidade de Campos Gerais, município próximo a Alfenas. Desde o ano passado, a família decidiu se mudar para Alfenas e, após concluir o ensino médio, Mateus Soares se ingressou no curso de Ciências Biológicas. “Eu escolhi a UNIFAL-MG e esse curso porque eu quero ser professor de Biologia”, conta.

Para adaptar o material didático às necessidades do discente, os professores têm se esforçado. A professora Márcia Cordeiro, da disciplina de Química Geral, compartilha que sentiu receio no início ao ser comunicada sobre a chegada de Mateus Soares. Ao relembrar seus primeiros anos na UNIFAL-MG, a docente conta que trabalhou com a preparação de modelos moleculares para estudantes cegos e de baixa visão, oportunidade em que aprendeu sobre o conceito “inclusão marginal”, o qual se refere aos estudantes com deficiência incluídos em sala de aula, mas não efetivamente no aprendizado.

“A única coisa que eu tinha certeza que eu não queria para o Mateus era isso: que sua inclusão fosse marginal. E pelo menos nas aulas de Química Geral – teórica e experimental – isso dependia apenas de mim”, afirma. A docente revela que sempre prepara as aulas até domingo, para poder se dedicar de segunda à quarta nas adaptações de imagens, vidrarias de laboratório e estratégias de como fazer com que o discente veja o que os demais colegas estão vendo nas imagens e livros didáticos. “Eu já conhecia alguns materiais que poderiam ser utilizados, mas outros nascem do improviso”, comenta.

Estratégias que fazem a diferença 

Logo na primeira aula, a professora Márcia Cordeiro encontrou dificuldade com a cola utilizada no material que explicaria os estados sólido, líquido e gasoso, que se espalhou. “A atividade virou ‘os estados da matéria usando aveia’ ilustrando a organização submicroscópica das partículas. No momento da aula, ele me disse ‘eu me lembro de meu professor do ensino médio falando isso, mas nunca ninguém me mostrou como era e hoje você me mostrou’. Obviamente isso foi a força motriz para que novas adaptações ocorressem”, revela.

Jonas Oliveira e Felipe Leite ajudam Mateus Soares na aula de Química Experimental em laboratório. (Foto: Arquivo/Márcia Cordeiro)

As aulas de Química Geral Experimental são feitas em duplas ou trios, e, com isso, o Mateus Soares tem dois colegas que o envolvem nas aulas. “Eu os chamo de dois anjos: Felipe e Jonas. Eles fazem, envolvem e/ou explicam ao Mateus o que está sendo feito e os resultados. E também conduzimos ele neste processo, colocando ele para medir algumas soluções, com os materiais em suas mãos. Outra estratégia para sentir os volumes com o tato, usamos soluções geladas; assim com a diferença de temperatura ele tem a sensibilidade de ‘onde está o nível do líquido'”, explica a professora Márcia Cordeiro.

“Cada pulinho e vibração do Mateus nesse processo de ‘eu entendi’ é nossa recompensa mais valiosa”, compartilha a professora Márcia Cordeiro. (Foto: Arquivo Pessoal)

Felipe de Sousa Leite é voluntário do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace), e também colega de curso do Mateus Soares. “Mateus tem essa necessidade de alguém estar acompanhando por conta da mobilidade para se deslocar dentro da UNIFAL-MG e durante as aulas também”, diz. “Os professores estão produzindo o material adaptado e às vezes precisa ter alguém ali junto com ele para ir mostrando e aí eu faço esse trabalho.”

Conforme a professora Márcia Cordeiro, nas aulas teóricas, Felipe Leite sempre se senta junto ao Mateus Soares e vai conversando com ele ao longo da aula. “Os materiais que eu adapto entrego primeiro ao Felipe para que ele veja as instruções que deixo escrito e, posteriormente, ao longo da aula, vou orientando ‘agora vamos usar essa folha’. Não só o Mateus está aprendendo Química, mas o Felipe aprende mais ainda, pois ele, junto a mim, compreende o que está sendo ensinado para depois ensinar. E cada pulinho e vibração do Mateus nesse processo de ‘eu entendi’ é nossa recompensa mais valiosa”, compartilha.

Mateus Soares junto ao colega Felipe Leite, que o ajuda nas atividades em sala e a se locomover pelos espaços da Universidade. (Foto: Arquivo/Felipe Leite)

Segundo Felipe Leite, os colegas se reúnem para estudar e fazer os trabalhos. “Se tiver um vídeo para assistir, a gente assiste junto e discute os trabalhos. Ele tem meu contato do WhatsApp e a gente sempre está conversando e vou estudando junto com ele. Então é bom para mim também nesse sentido porque a gente vai aprendendo junto”, relata.

Em relação aos materiais adaptados, Felipe Leite destaca a importância para o desenvolvimento do colega. “Os materiais que o pessoal está produzindo estão sendo fundamentais, porque às vezes, como na própria Biologia Celular mesmo, a gente depende muito de ver as lâminas e um esquema das estruturas que a célula tem. E o pessoal adapta isso para ficar tátil e ele conseguir ver com as mãos”, compartilha.

Nas aulas de Química no laboratório, a professora Márcia Cordeiro separa as vidrarias que serão utilizadas pelo Mateus Soares e seu grupo, e escreve em Braille o volume e marcação de cada vidraria, usando cola 3D. “Vamos – eu, técnicos e o grupo – pensando estratégias ao longo das medidas, pesagens e procedimentos que ele não pode ver. Sempre colocando a aprendizagem lado a lado com a segurança de cada um dos 44 alunos do local”, conta a professora Márcia Cordeiro, compartilhando que as dificuldades começam já pela escrita, pois muitas vezes os símbolos referentes à escrita em Braille não cabem na vidraria.

Materiais das aulas de Química Geral adaptados para o estudante Mateus Soares conseguir visualizar pelo tato. (Foto: Arquivo/Márcia Cordeiro)

O estudante Mateus Soares reconhece a mobilização dos professores e colegas, e atesta os materiais adaptados. “Os professores da UNIFAL-MG estão querendo me ajudar e estão adaptando bem para mim. Eu nunca vi isso antes. Eu não tive professor de apoio no ensino fundamental e nem no ensino médio. Só dependia de amigos para ajudar”, narra.

“Eu estou indo bem em Química, a Márcia Cordeiro mostra a vidraria no laboratório de Química, a gente já fez dois experimentos químicos. Com a Márcia Bizinotto também em Biologia Celular, eu estou indo bem, ela me mostra lâminas produzidas pelo pessoal”, detalha. “Nunca senti esse carinho de professores antes.”

Conforme o relato de Mateus Soares, a maior dificuldade no momento tem sido os vídeos. “A gente assiste e até entende a explicação, mas o problema é que não consigo entender quando mostra as imagens”, diz.

Estudantes voluntários exercem a cidadania e a solidariedade enquanto aprendem
Estudantes voluntários desenvolvem material para as aulas de Biologia Celular. (Fotos: Arquivo/Andréia Paffaro)

Para ajudar a desenvolver os materiais, os docentes solicitaram o apoio da professora Andréa Mollica do Amarante Paffaro, que trabalha com a construção de modelos didáticos tridimensionais para o ensino de Ciências. “Minha primeira preocupação logo no início foi como materializar as imagens da microscopia. O estudo de células e tecidos muitas vezes já é complexo para o estudante que enxerga, como passar este conteúdo para ele? Como conseguir que o Mateus ‘visualizasse’ as lâminas histológicas?”, pontua.

A docente solicitou fotos das lâminas que seriam utilizadas nas aulas práticas para professora Márcia Bizinotto e começou a imaginar como criar texturas diferenciadas para cada estrutura. “Logo na sequência chegou a demanda da aula teórica. O professor Valdemar Paffaro não tinha como explicar as imagens das moléculas e estruturas celulares sem que o Mateus conseguisse acompanhar as ilustrações dos livros didáticos”, conta.

Com o aumento das demandas, a docente pediu voluntários dos cursos de Ciências Biológicas e Biomedicina para fazerem uma força-tarefa. “Tive uma grata surpresa. Atualmente temos em torno de 16 acadêmicos auxiliando a produzir materiais didáticos para que, através do toque, o Mateus possa ‘visualizar’ as estruturas celulares e lâminas histológicas criando modelos mentais para compreensão do conteúdo da disciplina de Biologia Celular”, diz.

Profa. Andréia Paffaro (ao meio) com os estudantes voluntários, que ajudam no desenvolvimento dos materiais adaptados. (Foto: Arquivo/Andréa Paffaro)

Conforme a professora, os estudantes têm trabalhado bastante para confeccionar os modelos mais fidedignos possíveis com as estruturas reais. “Eles estão confeccionando as estruturas através de tentativas e erros, avaliando e pensando em como representar cada molécula com contas missangas, cola, EVA, isopor, tecido, massinha, barbante, entre outros materiais”, explica.

O trabalho exige um feedback diário, por isso o grupo está em constante contato com Felipe Leite e Mateus Soares, para saber se é preciso aprimorar os materiais. “A lâmina de intestino foi criando forma em três aumentos diferentes. Primeiro mostrando seus vilos representando a lâmina panorâmica, depois no aumento de 20x reproduzimos o epitélio com as células caliciformes texturizadas com glitter e o tecido conjuntivo com os núcleos em relevo. Nos aumentos de 40x tentamos ressaltar as microvilosidades do epitélio intestinal e ainda criamos um”, descreve.

Para a professora Andréa Paffaro, a força-tarefa é um exemplo de empatia e de exercício de cidadania dos estudantes voluntários, além de possibilitar que eles complementem o aprendizado da sala de aula. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Para a aula teórica já preparamos muitos materiais em grande aumento. Alguns já foram utilizados para que o Mateus pudesse reconhecer os filamentos do citoesqueleto e entender como estes organizam no interior celular”, acrescenta.

Na avaliação da professora, a força-tarefa criada pelo grupo tem sido excelente para todos os envolvidos. “Além dos acadêmicos terem a oportunidade de complementar o aprendizado da sala de aula, produzindo o material didático comigo, eles têm aproveitado para tirar dúvidas, fixar melhor o conteúdo e exercitar a criatividade”, conta.

“Outra coisa boa é que eles estão criando vínculos, pois temos passado bastante tempo trabalhando em conjunto já que o material precisa ser produzido rápido porque a disciplina está em andamento. Mas o melhor de tudo isso é que estou vendo um grande exemplo de empatia e de exercício de cidadania por parte destes estudantes”, ressalta.

Desafios que fazem repensar as ações de apoio e acompanhamento 

Na visão da professora Cláudia Gomes, pró-reitora de Assuntos Comunitários e Estudantis, a chegada do estudante Mateus Soares à UNIFAL-MG, ao mesmo tempo que trouxe à tona desafios, também mobiliza a Universidade a buscar soluções de adaptação. “Para a Prace [Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis], a chegada do estudante Mateus no curso de Ciências Biológicas, se de um lado nos ‘tensiona’, frente aos desafios necessários a ser superados pela Instituição para que possamos garantir sua permanência e desenvolvimento acadêmico e profissional, por outro lado, nos mobiliza diariamente na construção de estratégias de apoio e acompanhamento”, afirma.

Profa. Cláudia Gomes – pró-reitora de Assuntos Comunitários e Estudantis. (Foto: Arquivo/Dicom)

Segundo ela, nos últimos 30 dias, ainda que a experiência não tenha superado todos os desafios, a Instituição não se nega a enxergá-los e a trabalhá-los. “Nossa experiência está sendo sem dúvida firmada por um compromisso institucional, que envolve diferentes setores e inúmeras pessoas, algumas, por exemplo, nos bastidores, mas de essencial importância, como os responsáveis pelos encaminhamentos e montagem de carteira adaptada, os responsáveis pelos encaminhamentos e celeridade da compra e retirada de materiais necessários para o estudante, a equipe de apoio para a garantia do acesso à tecnologia da informação, assim como os responsáveis pela atenção às condições de pertencimento do estudante”,  explica, relacionando a experiência à costura de uma rede tecida por várias mãos.

A pró-reitora cita, entre esses atores, os professores Márcia Cordeiro, Márcia Bizinotto, Vinícius Xavier, José Paulo Santos e Valdemar Paffaro, além dos estudantes sob a supervisão da professora Andréa Paffaro. “Eles merecem destaque, pois estão diariamente criando e implementando formas e estratégias para o desenvolvimento acadêmico do estudante, a partir de diferentes disciplinas e conteúdos. Receber o relato do Mateus quanto às atividades realizadas em cada disciplina nos mobiliza e nos indica que estamos no caminho, que vem sendo trilhado de forma coletiva e institucional, para a garantia dos pressupostos educacionais inclusivos na Instituição”, relata.

Missangas, cola, EVA, isopor, tecido, massinha e barbante são alguns dos materiais utilizados pelos estudantes para adaptar as lâminas de Biologia Celular. (Fotos: Arquivo/Andréa Paffaro)

Para a professora Márcia Cordeiro, que no início achou que seria impossível a adaptação, agora tem outra percepção sobre as aulas. “Hoje vejo que dá para fazer as atividades com ele, sobretudo por termos um aluno de apoio. Seria melhor ainda se houvesse uma equipe para esse preparo, mas, como eu não tenho ainda, eu tenho olhado minhas aulas com outros olhos, sobre como ensinar a todos e ensinar a ele, especialmente. É óbvio que tem suas dificuldades, falta de materiais à disposição, toma um tempo muito maior de preparo ao longo da semana, mas vejo que é possível. Especialmente porque, em muitas dessas dificuldades, a UNIFAL-MG agora está se preparando e nos próximos, já estarão sanadas”, aponta.

A docente acredita que em algum momento não terá materiais suficientes para explicar a matéria, como é o caso de uma tabela periódica em Braille, da qual não dispõe e que agregaria muito aos estudos de massas atômicas de Mateus Soares. “Naturalmente eu imagino que em algum momento eu não vá conseguir adaptar e vou ter que falar ‘Mateus, hoje você só vai ouvir a aula, sem sentir nada’. Mas a cada aula, eu olho meu material e penso ‘esse dia pode um dia chegar, mas não vai ser essa semana não”, conclui.