Num tempo em que muitos – à direita e à esquerda – postulam a elevação do ressentimento a política de Estado, é interessante conhecer a obra desse poeta da Martinica, uma ilha do Caribe que aboliu a escravidão meio século antes do Brasil. Aimé Césaire, autor do Caderno de um retorno ao país natal (1939), é um dos heróis nacionais de seu país, que tem pouco mais da metade do número de habitantes de Ribeirão Preto; o outro é o psiquiatra Frantz Fanon, que escreveu Os condenados da Terra (1961). Em comum, entre eles, o fato de terem sido intelectuais que pensaram a rebelião contra o estatuto colonial da Martinica, até hoje uma possessão francesa, e contra o preconceito étnico.
Césaire criou a palavra negritude, hoje um pouco em desuso na moenda dos discursos ideológicos que precisam o tempo todo proliferar seus vocabulários para não se mostrarem como o que são, desvios de uma teorização filo-esquerdista que acaba favorecendo o Capital, na medida em que alimenta a paranoia ultradireitista. Mesmo sendo evidente que o ressentimento esteve na origem do nazismo, certas tendências da ação política contemporânea não percebem, no crescimento eleitoral do ultraconservadorismo em tantos países, a possibilidade de surgirem novos fascismos – o nosso, brasileiro, foi escanteado por pouco nas últimas eleições, e não seria muito inteligente substituí-lo por uma cegueira ideológica de sinal trocado.
O que importa, no poema de Césaire, é sua beleza selvagem que nem a tradução descuidada consegue desbotar. Herdeiro das vanguardas que por aqui chamamos Modernismo, o Caderno é um jorro de imagens que capta o sentimento patente em seu título: a emoção de um expatriado que, no retorno à terra onde nasceu, redescobre a si mesmo e a sua condição, tentando expressá-la conjugada a uma revolta (que nada tem dos estereótipos autocomplacentes comuns no gênero) contra a situação do povo pobre daquele território antilhano.
Longo poema em prosa, a obra descende de Rimbaud e tem parentesco evidente com a escrita automática do Surrealismo. Consiste na superposição de momentos líricos deflagrados pela visão do país natal depois de uma temporada na metrópole; o poeta convoca sua terra e seus semelhantes a tomarem consciência da real situação que os afeta:
Ao final do amanhecer, a extrema, a enganosa e desolada lama sobre a ferida das águas,
os mártires que não testemunham; as flores de sangue que se desvanecem e se espalham
no vento inútil como chiados de papagaios faladores; uma vida velha e mentirosamente
risonha, com lábios abertos por angústias desafetadas; uma velha miséria apodrecendo
sob o sol, silenciosamente, um velho silêncio de pústulas tíbias, a horrível nulidade
de nossa razão de ser.
Como é possível intuir pelo trecho citado, nada de heroísmo postiço nem de discurso pseudo-revolucionário. A grande poesia é outra coisa; é um metabolismo íntimo e pessoal de fenômenos que, sim, podem ter a ver com o drama coletivo, mas só podem ser cantados liricamente se submetidos à força do sentimento individual, pois, como disse Miguel de Unamuno em seu admirável Do sentimento trágico da vida (1912), não existe a abstração que chamamos “a humanidade”, mas sim o indivíduo de carne e osso. Césaire, como todo poeta que compreende o que está fazendo com a linguagem, sabe-se um processador de estados de espírito que se expressam por cadências e imagens muitas vezes originadas além do perímetro da consciência, numa região que só pode vir à tona como a lava de um vulcão, à qual não se pode impor um curso: ela vai por onde quer.
“A tristeza e suas grandes mãos de vento” carregam a poesia, que só pode, em seu jogo incessante entre o ritmo da prosa e o colorido da frase musical cortada por súbitas fulgurações, tentar apropriar-se da força que a impulsiona, então escolhendo a direção de seu movimento. Mas, ainda que dilacerado por uma situação que mancha de doença e miséria a beleza natural de sua ilha, o poeta se torna, por meio de seu próprio discurso, capaz de um “estranho orgulho” a apontar para a possível redenção:
Tíbio amanhecer de calores e de medos atávicos
pela borda minhas riquezas peregrinas
pela borda minhas falsidades autênticas
Mas que estranho orgulho me ilumina de repente?
venha o colibri
venha o gavião
venham os restos do horizonte
venham o cinocéfalo
venha a lótus portadora do mundo
venhamos golfinhos numa insurreição de pérolas a quebrar a concha do mar
Esse imaginário repleto de elementos marinhos se prolonga, já num anúncio do desfecho do poema, na “prece viril”:
Ao final do amanhecer, minha prece viril:
dai-me os músculos desta canoa sobre o mar muito agitado
e o júbilo convincente concha marina da boa nota.
Olha eu não sou mais que um homem, nenhuma degradação, nenhuma
cuspidela o conturba,
eu não mais que um homem que aceita já sem cólera
(no coração somente tem amor imenso, e que arde)
É claro que a aceitação poderá ser transformada – por mentes simplórias tanto na poesia como na política – em conformismo, mas a história do autor desmentiria tal movimento. Césaire não é por acaso herói de seu povo; ele morreu aos 94 anos reconhecido como um lutador, e não só por meio da poesia, mas também da ação política, contra a opressão colonialista consubstanciada no que há de pior: a miséria que acorrentava os legítimos donos do paraíso antilhano, cuja renda, hoje, lastreia-se quase totalmente no turismo. Se a Martinica ainda não é independente – e seria uma boa ideia deixar de ter o euro como moeda? –, certamente sua situação é bem melhor do que nos tempos em que servia só para produzir açúcar e rum utilizando mão de obra escravizada.
Não é com raciocínios simplistas que se pode ler uma poesia tão rica – a refletir a complexidade humana, política e econômica do mundo contemporâneo. Por isso, o Caderno de Césaire não é fácil; nenhuma poesia que valha a pena é totalmente acessível à primeira leitura, assim como a consciência aguda de nossa condição humana é sempre um trabalho a ser retomado a cada manhã.
que basta que nos coloquemos no ritmo do mundo porém a obra do homem somente
agora começou
e falta ao homem conquistar toda a proibição imobilizada nos rincões de seu fervor
e nenhuma raça tem o monopólio da beleza, da inteligência, da força
e há lugares para que todos possam conquistar e agora sabemos que o sol gira ao redor
de nossa terra iluminando a parcela que fixou nossa única exclusiva vontade e que toda
estrela cai do céu à terra ao nosso comando sem limite.
É, claro, uma perspectiva utópica. E não seria um pouco de utopia o que mais falta ao nosso mundo desencantado, onde tantos têm fórmulas infalíveis e mecânicas para redimir a humanidade, mas quase sempre transformam os problemas em, como disse o Padre Vieira, “xadrez de palavras”?
Aimé Césaire assumia, por meio de seu poema, a impureza de uma condição vincada pela circunstância histórica. Não pretendia abolir a história passada, como hoje muitos parecem pretender. Mais uma vez: a grande poesia não se pode fazer com autocomplacência; por que o poderia a política, que, por definição, deveria compartilhar com os poetas a tarefa de “dar um sentido mais puro às palavras da tribo” (Mallarmé)?
E aqui estão aqueles que não se consolam porque não são feitos à semelhança de Deus
senão do Diabo, aqueles que consideram que se é negro como se é dependente de segunda
classe: esperando melhorar e com possibilidade de subir mais alto; aqueles que capitulam
diante de si próprios; aqueles que vivem no fundo da masmorra de si mesmos; aqueles
que se envolvem com pseudomorfose orgulhosa; aqueles que dizem à Europa: “Olhe, eu
sei como fazer reverências, como apresentar meus respeitos, em resumo, não sou diferente
de você; não faça caso de minha pele negra: foi o sol que me queimou”.
No mínimo, Aimé Césaire é um poeta que merece ser lido com muita atenção.
Título: Caderno de um retorno ao país natal
Autor: Aimé Césaire
Gênero: Ficção | Literatura Estrangeira
Ano da edição: 2011
Selo: Editora Terceiro Milênio
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).