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Não é tudo isso, gente

Só mesmo na confusão mental que ultimamente tomou conta, no Brasil, do que deveriam ser as classes pensantes, um escritor de recursos técnicos tão limitados poderia ser celebrado como grande autor de ficção: Torto arado, que ganhou vários prêmios importantes (Leya, Oceanos e Jabuti), serviu para catapultar em poucos anos o baiano Itamar Vieira Junior a oráculo dos louvaminheiros de plantão na imprensa e na academia.

Ocorre que o romancista domina mal os fundamentos da arte narrativa. Não basta, por exemplo, que os episódios enfeixados num volume sejam, por assim dizer, acontecíveis: é preciso que a verossimilhança seja garantida por uma construção mais ou menos lógica – não necessariamente cartesiana, é claro, pois desde o Surrealismo é facultado instaurar num texto literário o império do absurdo ditado pelo inconsciente, e Mário de Andrade fundou a poética de Macunaíma (1928), antes de tudo, na relativização do tempo e do espaço. Ora, a equação narrativa de Torto arado é capenga desde o título do livro, lá pelas tantas explicado em função da dificuldade de Belonísia, uma das protagonistas, em pronunciar a palavra arado. Promete-se, portanto, um arado torto que não há; o que existe é, pronunciada tortamente, a palavra que nomeia o instrumento agrícola – de resto, muito pouco importante na economia do relato. Se se alegar que é figura de linguagem, será uma figura metalinguisticamente torta, e não por qualquer intencionalidade autoral.

Belonísia é irmã de Bibiana, ambas filhas de Zeca Chapéu Grande e Salustiana, moradores de uma comunidade rural na Chapada Diamantina, que fica na região central da Bahia. A primeira delas havia ficado muda logo nas primeiras páginas, depois que ambas têm a infeliz – e pouco explicável, pois são crianças espertas – ideia de colocar na boca uma faca encontrada sob a cama da avó, dentro de certa mala cuja origem mais tarde saberemos. Assim resumido, o ponto de partida do enredo parece fazer bastante sentido, e talvez essa impressão inicial tenha contado muito para os jurados que premiaram Torto arado. As cenas iniciais têm uma intensidade que falta ao relato como um todo.

A amputação acidental da língua – não se faz aqui referência irônica o estilo do autor – é, de fato, chocante. O ambiente onde ela ocorre pode soar, por sua ambiência rural e longínqua, até meio fantástico para um habitante do Brasil que se extasia diante da tela onde passa o filme da Barbie. Mas o narrador logo se perde num dispêndio de retórica no qual termina por prevalecer certo tom indeciso entre realismo documental e romantismo populista; Itamar é prolixo. Além disso, são muitos os seus descuidos em termos de coerência cronológica, como tornar contemporâneos a primeira TV em preto e branco surgida na região e o advento das antenas parabólicas. A título de contraprova, exibe uma invencível dificuldade com o emprego do pronome possessivo seu, isso para não falar na inclusão de um vocabulário de coach (“assertividade”, “interagir”) na fala de personagens que deveriam usar linguagem mais apegada às concretudes da vida junto da natureza.

O enredo caminha arrastado, sendo encarregadas da narração as duas irmãs. A primeira parte, atribuída a Bibiana, é marcada pelo suspense sobre qual das duas teria ficado muda em decorrência do acidente com a faca; em algum ponto próximo à troca de turno, quando Belonísia assume o papel de narradora, já sabemos que lhe haviam cabido a mudez e a solidão, principalmente depois que a irmã, sua intérprete e confidente, havia fugido para longe com o primo Severo, do qual estava grávida; da cidade grande, onde afinal os dois se fixam, retorna muito mais tarde como professora primária, tendo-se graduado o marido em agitador político que procurava convencer os posseiros da comunidade de que tinham direito à propriedade da terra. Mais uma vez: o resumo dá a impressão de que a narrativa é bem apresentada, mas a palavra quilombola aparece pela primeira vez na página 187 – e o livro tem 262 –, num efeito semelhante à demora na identificação da amputada.

O drama dos descendentes de africanos fixados na fazenda Água Negra, vizinha dos rios Santo Antônio e Utinga, contém matéria suficiente para resultar um nutrido romance. Talvez o problema de Itamar Vieira Júnior advenha de sua formação em áreas do conhecimento que demandam muita leitura de teoria e pouca de obras literárias. Estamos (nunca é demais lembrar) no tempo da superespecialização. Por esse mesmo motivo, seria muito justo encarecer o médio talento do escritor como ficcionista, apesar de parecer pouco versado na tradição literária, tanto que incorre, com certa frequência, em clichês de ambientação e linguagem. Daí a ser um clássico instantâneo, vai certa distância.

Com seu instrumental literário escasso, o autor dispersa a matéria narrativa por um caminho em que o espírito da luta quilombola aparece indeciso entre a autopiedade e a pregação de um revanchismo ao mesmo tempo violento e puramente simbólico. A “conversão” de Bibiana em líder comunitária logo após o assassinato de Severo (presumivelmente, a mando de Salomão, novo proprietário da fazenda) é pouco convincente na exata medida de seu caráter súbito. E, depois, as narradoras insistem tanto em palavras como “jarê”, “curador” e “encantados”, referentes a cultos afro-brasileiros de que poucos leitores terão ouvido falar, a ponto de parecer que estão pretendendo convencer alguém de que o autor realmente obteve uma síntese crível entre tais expressões religiosas e a luta dos quilombolas. Itamar reedita em ponto menor o papel dos orixás em Jubiabá (1935), só para citar o protótipo dessa temática na obra de Jorge Amado. Tudo poderia ser, mas não é, e o assassinato do fazendeiro-vilão, ao que parece inspirado pela “encantada” conhecida como Santa Rita Pescadeira, que surge nas últimas páginas como terceira narradora, é um desfecho que fica longe de justificar a última frase do livro: “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte.”

Título: Torto Arado
Autor: Itamar Vieira Junior
Gênero: Fantasia
Ano da edição: 2019
Selo: Todavia

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).