Apenas herança dos anos tenebrosos? Recorde de violência sexual e contra as mulheres em 2022

Caio Correia dos Santos Quina ¹ 
Amanda Marques Brito de Souza ²
  Leticia da Silva Matias dos Santos ³ 

Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá: isto é mentira! Mas, as misérias são reais.

— Carolina Maria de Jesus


Os dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2023, revelam a dimensão das violências contra mulheres no contexto brasileiro. Segundo o Anuário, em 2022, foram registrados 245.713 casos de violência doméstica; 613.529 ameaças de violência doméstica e 899.485 ligações de denúncia ao 190. Estes dados revelam que o espaço intrafamiliar é um ambiente de medo e violência contínua para muitas mulheres, e que a violência doméstica deve ser reconhecida como um problema público e social que requer diversos mecanismos e medidas institucionais em seu enfrentamento (BANDEIRA, 2019).

O entendimento da violência doméstica como um problema público se associa à construção histórica da sociedade, que, segundo Pateman (2008), se utiliza do contrato sexual para se estruturar. Saffioti (2015) aponta que o contrato sexual, juntamente com o patriarcado, transcende a relação privada, tornando-se civil, conferindo direitos sexuais aos homens (maridos) sobre as mulheres e estabelecendo uma relação hierárquica que alcança todos os campos da sociedade. A autora explica que essa relação desigual e de controle sobre o corpo feminino possui base material, corporizando-se e representando uma estrutura de poder que se baseia tanto na ideologia quanto na violência. No arranjo social brasileiro, essa estrutura é ainda fortalecida através da propagação de pautas conservadoras, que ganharam forças principalmente nos últimos anos, proporcionando uma base para as ações políticas (ONUMA, OLIVEIRA, 2023).

Esse processo permite compreender a existência de diferentes formas de violências que atingem as mulheres. Elas se manifestam por meio de ameaças, agressões físicas ou sexuais, violências patrimoniais, obstétricas e psicológicas, que podem ser cometidas por parceiros íntimos, familiares ou desconhecidos. Dentre essas violências, destaca-se aquela que pode levar à morte da mulher, qualificada como feminicídio. Só em 2022, foram 1.437 vítimas de feminicídio, dos quais 61,1% dos casos foram de mulheres negras, e 71,9% das vítimas tinham entre 18 e 44 anos. Ademais, em 2022, houve 2.563 tentativas de feminicídio, um aumento de 16,9% comparado com os dados de 2021.

Em relação à violência sexual, o Anuário informa que, somente em 2022, 74.930 mulheres ou meninas foram vítimas de estupro, sendo 18.110 mulheres adultas e 56.820 de vulneráveis, dentre as quais, 61,4%, apresentam idade entre 0 e 13 anos. Do total das vítimas, 88,7% são do gênero feminino e 11,3%, do masculino. Sim, você leu corretamente! Homens também podem ser vítimas de violências de gênero, embora esta ocorra com mais frequência contra mulheres (cisgênero ou transgênero). Isso porque a violência de gênero “é um conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos” (SAFFIOTI, 2001, p. 15).

A partir do recorte de cor/raça ou etnia, os dados apontam que 56,8% das vítimas de violência sexual são negras; 42,3% brancas; 0,5% indígenas; 04% amarelas. Além de 68,3% dos casos ocorreram na residência da vítima (considerando apenas o estupro de vulnerável, os números chegam a 71,6%) e 9,4% em vias públicas. Outros espaços que apresentaram registros foram escolas, hospitais, áreas rurais, totalizando 22,3% de ocorrências.

Todavia, mesmo que os mecanismos de prevenção e combate à violência contra as mulheres tenham evoluído e os debates sobre meios de coibi-las serem mais recorrentes, as estatísticas provam que o número de casos segue aumentando. O Anuário ressalta que alguns dos motivos para o crescimento dos números de violências contra as mulheres e para a “explosão da violência sexual no Brasil”, entre os anos de 2021 e 2022, são o desmantelamento de políticas públicas durante o Governo Bolsonaro, o crescimento dos movimentos reacionários e o lockdown durante o período pandêmico, com o fechamento dos serviços de acolhimento e das escolas, incidindo no aumento no número de estupro de crianças e adolescentes no período.

Além disso, tal perpetuação das violências pode expressar um processo maior, que diz respeito à incapacidade dos aparelhos de segurança de lidar com elas e coibi-las, além de que as medidas adotadas, via de regra, não têm conseguido interromper o ciclo de violência (SAFFIOTI, 2015; QUINA, DIAS, ONUMA, 2021). Uma das explicações para isso está no fato de que a atuação do Estado, como uma força da esfera pública, choca-se com o âmbito privado, pois estes ambientes são “constituídos como espaços de maior visibilidade para formas de violência contra mulheres” (QUINA, DIAS, ONUMA, 2021, p. 8), como expresso no registro de 613.529 ameaças de violência doméstica e as 899.485 ligações de denúncia ao 190.

Os dados do Anuário, apontados aqui, expressam a construção histórica e social da violência cultural (relativa a práticas culturais e comportamentais como o machismo e a misoginia que discriminam e inferiorizam as mulheres) e da violência estrutural (que diz respeito a privações, marginalizações e discriminações de determinados setores da sociedade), que legitimam a chamada “cultura do estupro” (CONTI, 2016). Isso porque a violência cultural faz com que a violência direta (aquela em que há um acontecimento, um agressor e uma vítima) e estrutural (associada à desigualdade social entre indivíduos e/ou grupos) seja sentida, do ponto de vista social, como correta ou menos não errada (GALTUNG apud CONTI, 2016, p. 2). Vale destacar que a cultura do estupro não disponibiliza as bases para a violência direta em si, porém é legitimada por meio da construção das mulheres como uma cidadã de segunda classe, destituídas de vontade e opiniões, que se apresenta como um ser passivo, sendo estas culpabilizadas, “porque sua saia era muito curta ou seu decote ousado” (SAFFIOTI, 2015, p. 67).

Para Sousa (2017) (corroborando com os dados apresentados no Anuário), a cultura do estupro é reafirmada e vinculada à violência intrafamiliar que atinge crianças e adolescentes, pois, como apresentado, este grupo figura como principal perfil das vítimas de estupro, particularmente do gênero feminino, ocorridos, em 71,6% dos casos, em sua própria residência, por familiares e conhecidos, possuindo, portanto, uma “circunstância agravante por ser perpetrado pelo pai, pelo tio, pelo avô, etc.” (SAFFIOTI, 2001, p. 135). Esses dados demonstram como a violência cultural e estrutural estão enraizadas no âmbito familiar, o que dificulta os movimentos de denúncias.

Essa estrutura desigual entre homens e mulheres, manifesta na sociedade, segundo os estudos de Federici (2017; 2019), seria a consequência da “caça às bruxas”, da normalização da violência na sociedade. A caça às bruxas (e a misoginia associada a ela) foi um dos processos ocorridos na Europa para minar o status social que as mulheres detinham no período feudal, tornando-se um elemento articulador para a instauração de uma nova ordem social (FEDERICI, 2017). Esse fenômeno transformou as relações sociais e funcionou como um mecanismo para que ocorresse a aceitação popular e seu suporte, garantindo o processo de transição do feudalismo ao capitalismo, o que levaria a reconfiguração também do patriarcado[1](FEDERICI, 2017).

Mas o que permite apontar o patriarcado como parte integrante do capitalismo? De acordo com Saffioti (2015), o patriarcado é o processo relacional de dominação-exploração, por meio de práticas, processos simbólicos, entre outras manifestações, que gera outras formas de exploração-dominação, não apenas de homens sobre as mulheres, pois, a exemplo da estrutura de poder entre as formas de gênero socialmente instituída, ele também se manifesta nas desigualdades, na dominação e exploração de categorias sociais como raça, etnia e classe.

Assim, o patriarcado torna-se uma estrutura de poder, e um dos determinantes da violência que acomete mulheres, mas também crianças e adolescentes, tornando-se um processo de dominação que se baseia no controle, no medo e na exploração de seus corpos. Mas isso se dá a partir da ordem social que, por meio de um processo como o das “caça às bruxas”, instituiu a normalização das violências contra as mulheres, minando a solidariedade entre aqueles pertencentes à mesma classe social e oferecendo a violência contra grupos minoritários, tornando-os “inimigos”. Eis a “válvula de escape” arquitetada pelo capitalismo para o não questionamento das desigualdades sociais. (FEDERICI, 2017, 2019; SAFFIOTI, 2013, 2015).

As violências contra as mulheres expressam o que Battacharya (2019) denomina de fatores consequentes que afetam as relações de gênero e as relações dentro da família, lembrando que tais fatores não estão associados apenas à “esfera privada” da vida social, mas fazem parte do âmbito da economia formal no espaço público. Por exemplo, nas relações familiares, homens e mulheres se unem, tanto material quanto psicologicamente, para enfrentar a nova jornada de trabalho. Ambos sofrem com as mudanças e relações postas pela sociedade, por exemplo, o aumento no preço do pão ou do arroz, o que pode levar a família a uma crise; em alguns casos essa crise pode resultar da privatização de importantes serviços, como os relativos aos cuidados, como creches e escolas.

Diante desse cenário, são as mulheres que arcam com essas atividades, devido justamente ao fato que são determinadas social e culturalmente pela ideologia patriarcal ao âmbito privado e ao exercício do cuidado. São elas que exercem o trabalho doméstico (remunerado e não remunerado), cuidam de crianças, idosos e doentes, alimentam a família, mantendo a estrutura capitalista em movimento. Assim, as mudanças na dinâmica desse processo, na reprodução social[2], devido a essas “crises” nas relações de parentesco, em espaços considerados seguros, também moldará os contornos das relações de gênero (BHATTACHARYA, 2019).

Ou seja, as mudanças no âmbito econômico-social poderão infligir na geração de práticas de violências contra as mulheres e de gênero, como a exemplo, a violência sexual de crianças, jovens e outros grupos. Assim, os registros apontados pelo Anuário em relação ao aumento da violência contra mulher e vulneráveis podem ser a representação dos efeitos de mudanças econômicas, políticas e sociais, como, por exemplo, a pandemia da COVID-19, o aumento de movimentos conservadores (que endossam o discurso e a prática de aprisionamento feminino a atividades de cuidado e do lar), a crise no sistema de seguridade ofertado à população, a miséria, a austeridade fiscal, etc. 

Diante dessa análise, e conforme proposto por Bhattacharya (2019), refletir sobre o fenômeno da violência apenas descrevendo sua intensificação não é suficiente para que se possa compreender a raiz do problema. A partir da análise dos dados da violência e da compreensão das imbricações que esse fenômeno possui com processos históricos e materiais, caminha-se para vislumbrar as relações que nós, enquanto sujeitos pertencentes a essa ordem social, somos colocados.

Logo, a Teoria da Reprodução Social (teoria basilar utilizada pelo Grupo de Pesquisa de Gênero pela Não Intolerância – GENI, da Universidade Federal de Alfenas) pode levar à desmistificação dos contornos da ordem social sobre as relações sociais, principalmente sobre as de gêneros, raça, classe. Fica aí o convite para que você, que leu esse texto e se interessou pela discussão, a conhecer o Grupo de Pesquisa GENI nas redes sociais.


Agradecimentos

Agradecemos às professoras coordenadoras do Grupo de Pesquisa de Gênero pela Não Intolerância (GENI/UNIFAL-MG) pelo incentivo para a realização deste artigo, à profa. Dra. Cilene pela revisão e à Diretoria de Comunicação (Dicom/UNIFAL-MG) por oportunizar tal discussão. 


Referências

BANDEIRA, L. M. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, 400p.

BHATTACHARYA, T. Explicando a violência de gênero no neoliberalismo. Marx e o Marxismo, v. 7, n. 12, jan/jun 2019.

FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2017.

FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

CONTI, T. Os conceitos de violência direta, estrutural e cultural. 2016. Disponível em:http://thomasvconti.com.br/2016/os-conceitos-de-violencia-direta-estrutural-e-cultural/. Acesso em: 25 ago. 2021.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário de Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023. 357p. Disponível em: < https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>. Acesso em 21 de jul. de 2023

ONUMA, F. M. S.; OLIVEIRA, A. L. “Cortina de fumaça” ou misoginia? Desvelando a relação intrínseca entre avanços do conservadorismo moral e da austeridade econômica no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, v. 10, n. 1, p. 131 – 159, 2023.

PATEMAN, C. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2008.

QUINA, C. C. S.; DIAS, L. L.; ONUMA, F. M. S. Por que o Estado é Ineficaz no Combate ao Feminicídio? Uma Análise Materialista do Estado. In: XLV Encontro da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Administração – EnANPAD, 2021, Online. Anais do XLV Encontro da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Administração – EnANPAD, 2021.

SAFFIOTI, H. I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, p. 115-136, 2001. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007. Acesso em: 24 ago. 2021

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015.

SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

SOUSA, R. F. Cultura do estupro-a prática implícita de incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 9-29, 2017.

[1] Ressalta-se que o patriarcado é um sistema antigo, muito antes do advento do capitalismo. Segundo Saffioti (2015, p. 63), “trata-se, a rigor, de um recém-nascido em face da idade da humanidade, estimada entre 250 mil e 300 mil anos. Logo, não se vivem sobrevivências de um patriarcado remoto; ao contrário, o patriarcado é muito jovem e pujante, tendo sucedido às sociedades igualitárias”.

[2] Compreende-se aqui a reprodução social como uma categoria das atividades – trabalho doméstico, de cuidado, reprodutivo – que regeneram e preparam determinado grupo de pessoas, para a sociedade. Assim, baseando em Bhattacharya (2019), a Teoria da Reprodução Social permite compreender como tal categoria pode elucidar as dinâmicas da produção (da economia formal) e sua capacidade de desestabilizar as relações de reprodução social posta nas relações intrafamiliares e de gênero da esfera privada e pública.


Caio Quina

Caio Correia dos Santos Quina é graduado em Interdisciplinar em Ciência e Economia e graduando em Administração Pública pela UNIFAL-MG. Bolsista pela FAPEMIG no projeto “Escrevevivências Femininas: traçando linhas em Educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas em Varginha/MG”, integra o Grupo de Pesquisa de Gênero pela Não Intolerância (GENI/UNIFAL-MG) e Sociedade, Estado e Gestão Pública (SEGEP/UNIFAL-MG). Além de membro do Grupo de Estudos sobre Estado, Mulheres e Políticas Públicas do GENI/UNIFAL-MG. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Economia (PET BICE) da UNIFAL-MG, campus de Varginha. Tem interesse nos estudos sobre: Estado, Gênero, Endividamento Familiar, Teoria da Reprodução Social e Trabalho. 


Amanda Souza

Amanda Marques Brito de Souza é graduada em Interdisciplinar em Ciência e Economia e graduanda em Administração Pública pela UNIFAL-MG. Membra do projeto de extensão “Escrevivências” Femininas: Traçando linhas em educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas e do Grupo de Pesquisa de Gênero pela Não Intolerância – GENI/UNIFAL-MG. Tem interesse nos estudos sobre Gênero, Trabalho, Trabalho Reprodutivo, Divisão Sexual do Trabalho e Neoliberalismo.

 


Leticia Santos

Leticia da Silva Matias dos Santos é graduada em Interdisciplinar em Ciência e Economia e graduanda em Administração Publica pela UNIFAL-MG. Membra do projeto de extensão “Escrevivências” Femininas: Traçando linhas em educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas e do Grupo de Pesquisa de Gênero pela Não Intolerância – GENI/UNIFAL-MG.  Tem interesse nos estudos sobre Trabalho, Políticas Públicas e Gênero.