Filosofia de bolso

Como todo cronista, a gaúcha Martha Medeiros tem suas teorias. É um efeito colateral do ofício: à força de falar sobre todos os assuntos e quase todos os dias, cada autor acaba desenvolvendo explicações particulares para os fatos. Martha, por exemplo, pensa que as mulheres que usam botox, falam alto demais e usam “bronzeados e decotes que seriam perfeitos num clube de strippers” só podem estar é “morrendo de medo da morte”.

Desusada opinião, num tempo em que constitui heresia fazer qualquer referência negativa a qualquer mulher. Mas Martha pode, porque é insuspeita; está longe de ser uma senhora submissa ao machismo estrutural – pelo contrário, é pessoa das mais irrequietas e rebeldes. E, aliás, todo mundo tem o direito de discordar dela ou de qualquer outro autor; quanto ao direito de “cancelar” a pessoa porque tem opinião diferente da nossa, aí são outros quinhentos fascistas. Uma coisa é certa: a cronista incomodará muitos mainstreamers fiéis ao catecismo ideológico da moda, talvez principalmente por destoar das visões idealizadas da condição feminina que citam a torto e a direito Simone de Beauvoir sem a ter lido.

Se um escritor não incomoda, tem pouca serventia. A função da literatura, desde que conseguiu transcender a condição romântica de mera mercadoria simbólica, e isso na virada do século XIX para o XX, é incomodar nossas convicções, fazer-nos olhar nossa condição social e existencial de um ângulo diferente daquele a que nos constrange o cotidiano. Nisso, Martha Medeiros é exemplar; suas crônicas operam, na maioria, como varas de ferrão contra a imobilidade mental.

É o caso daquelas reunidas em Coisas da vida (2005), mesmo que alguns de seus dados contextuais já tenham caducado. Ainda não havia WhatsApp, por isso a escritora aconselhava as pessoas a enviar mensagens de correio eletrônico para transmitir felicitações de aniversário. E aqui está – como ninguém é perfeito… – um problema da cronista: ela tem a mania de dar conselhos a seus leitores. Machado de Assis, nosso primeiro autor do gênero, fazia-o também, de vez em quando, mas normalmente não era a sério.

Outro defeito que poderá ser atribuído à cronista é aquele mesmo que punham em Freud: seu universo é bastante reduzido a certa classe média. A pobreza só comparece ao livro na página 165 (salvo engano), por meio da história de um menino que queria ganhar, de Natal, lápis, caderno e borracha em vez de brinquedos. Mesmo que isso tenha deixado o coração de Martha “do tamanho de meio amendoim”, pode ser que a raridade do episódio faça seu livro soar meio elitista.

Mas cronista só tem a obrigação de agradar a seu público. É disso, por sinal, que depende seu invejável emprego: escrever diariamente o que lhe dê na telha, sabendo que vai ganhar uns caraminguás por tais caraminholas.

A crônica é um gênero importantíssimo na formação do gosto por literatura. Num país cuja imprensa já praticamente não publica contos, e onde que a poesia virou um artigo ou de luxo ou de lixo, em que o romance é aquele cartapácio que a gente leva para a praia ou o mais novo panfleto da ideologia que estiver na moda, a leveza da crônica tem tudo para ser o principal detonador de interesse no que é específico da linguagem literária. Em sua brevidade, o gênero se aparenta com o conto e com o poema, tendo a vantagem de ser altamente portátil, na medida em que nascia já estampado em páginas de jornais e revistas.

Em Coisas da vida (passe o título que parece música de Roberto Carlos), Martha Medeiros aborda, em textos cuja leitura não demora mais do que dez minutos cada, situações do dia a dia que instigam a reflexão. Sua grande vantagem como escritora é saber começar e terminar um texto. Seus temas prediletos se ligam, muitas vezes, a questões afetivas e de costumes. Em boa parte das crônicas, o detonador é a lembrança de um filme ou do trecho de um livro, o que também torna essa coletânea uma boa fonte de indicação de leituras interessantes.

Embora os textos sejam curtas dissertações, às vezes contêm situações hipotéticas que valem como esboços de ficção. Sempre no mesmo diapasão: incomodar as mentes acomodadas, seja a um emprego, seja a um casamento mantido apenas por inércia. É uma oportunidade de filosofar amadoristicamente, função essencial da crônica, que não deixa de reproduzir, em ponto menor, aquele modo flutuante de pensar posto em voga pelos Ensaios de Montaigne no final do século XVI e em tudo antípoda da convicção moderna de que “está provado que só é possível filosofar em alemão”.

Aqui está um livro que cumpre, quase perfeitamente, o primeiro item das Seis propostas para o próximo milênio (1988) feitas por Italo Calvino, a leveza. Lê-se de cabo a rabo num domingo chuvoso, balança um pouco a nossa mangueira e, como as mangas que caem ainda estão verdes, o jeito é comê-las com sal. Hipertensos, cuidado!

Título: Coisas da Vida
Autor: Martha Medeiros
Gênero: Contos | Crônicas
Ano da edição: 2005
ISBN: 978.85.254.1481-6
Selo: L&PM Editores

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).