Desvalorização Política e Econômica do Trabalho em Enfermagem: a Insistência da Invisibilidade do Cuidado

Maria Regina Martinez¹ 

No último domingo, dia 05 de novembro, mais de 4 milhões de participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) do ano de 2023 foram desafiados a refletir sobre um tema de extrema relevância social. A proposta de redação, intitulada “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, trouxe à tona uma questão fundamental que afeta a nossa sociedade brasileira: o papel invisível, subvalorizado e subapreciado do cuidado, principalmente quando desempenhado pelas mulheres.

O “Cuidar” é uma atividade essencial que frequentemente passa despercebida, apesar de ser um alicerce que constrói e sustenta a nossa humanidade. Nesse contexto, o desafio de enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado se apresenta como uma oportunidade para repensar as estruturas e valores que permeiam nossa sociedade, reconhecendo a importância crucial de quem desempenha as atividades de cuidar, inclusive profissionalmente.

Sob a ótica capitalista convencional, o trabalho é frequentemente simplificado como uma transação entre o tempo e esforço de uma pessoa em troca de uma compensação financeira fornecida por terceiros que se beneficiam do produto desse esforço. Nessa equação, a visibilidade da produção desempenha um papel crucial na determinação da recompensa, já que se parte do pressuposto de que o trabalho só é válido se puder ser associado a um resultado tangível.

No entanto, essa visão limitada desconsidera uma falha fundamental, que é a ausência de reconhecimento do valor da imaterialidade gerada pelo tempo investido no trabalho. A profissão de Enfermagem produz uma grande parcela de trabalho que é invisibilizada pela natureza do ato de cuidar, um trabalho inverificável, incontrolável, não mensurável, mas completamente estruturante da condição humana.

Os profissionais de enfermagem representam o maior contingente de trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, totalizando mais de 2,8 milhões de profissionais entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem (COFEN, 2023). Não há dúvidas sobre a importância da sua atuação para a melhoria dos indicadores de saúde do país e sobre o reconhecimento mundial da importância dessa categoria profissional, no entanto a valorização monetária do seu trabalho pela sociedade brasileira permanece, para dizer o mínimo, insuficiente.

A despeito de quase uma década do movimento organizado em prol do estabelecimento de um piso salarial para a categoria de enfermagem e um discurso de valorização profissional encontrando eco na sociedade e esferas do poder executivo, legislativo e judiciário, esses trabalhadores assistiram, desapontados, ao andamento político claudicante da Lei 14.434 de agosto de 2022 que instituiu o seu piso salarial nacional.

Manter a invisibilidade e desvalorização do trabalho do cuidado é mais lucrativo ao contexto contemporâneo capitalista com herança neoliberal, desde que essa lógica justifica baixos salários como algo plausível para um trabalho que não gerou uma produção reconhecida como mensurável.

Mas mais lucrativo para quem? É possível uma vida viável sem cuidado? Pode a humanidade sobreviver à ausência ou desvalorização do trabalho invisível? Podemos nos manter indiferentes à desvalorização dos profissionais de enfermagem sem experimentarmos consequências?

A psicodinâmica do trabalho identifica esse movimento ordinário de precarização do trabalho associado à inércia da sociedade, e até mesmo da coletividade dos trabalhadores, como um processo de “banalização do mal” (Dejours, 2007). Conceito derivado da expressão “banalidade do mal” cunhada por Hannah Arendt em referência a Eichmann, um funcionário público nazista que foi responsável pelo ordenamento da morte de milhares de judeus ao cumprir as atribuições prescritas do seu cargo (Arendt, 1999).

A chamada “banalização do mal” pode ser definida como a ocorrência de atos prejudiciais e adversos infligidos a indivíduos em nossas sociedades, muitas vezes sem que haja uma mobilização política efetiva para combater a injustiça. Esse fenômeno se caracteriza por uma desconexão entre a adversidade enfrentada e a percepção de injustiça, especialmente por parte de uma parcela da população que mantém certos privilégios. O resultado é um processo que contribui para a tolerância social em relação a atos prejudiciais e injustiças, ao fazer com que o que é, na realidade, resultado do exercício do mal por alguns sobre outros, seja interpretado como adversidade comum.

A desvalorização legitimada pela sociedade dos profissionais de enfermagem corresponde perfeitamente à banalização do mal descrita pela psicodinâmica do trabalho, desde que não se trata de nada excepcional aceitar que o tempo despendido com o cuidado com o outro não precisa ser pago ou pode ser mal pago. Pelo contrário, essa crença naturalizada na nossa sociedade é banal, construída e internalizada historicamente.

Ora, mães que cuidam dos seus filhos, historicamente, nunca receberam remuneração para isso. Até mesmo as profissionais que se tornam mães têm acesso limitado à manutenção da sua remuneração durante os períodos em que suas crianças mais precisam dos seus cuidados.

Pode-se afirmar que as mulheres que se mantinham fora do mercado de trabalho para cuidar dos seus filhos eram protegidas economicamente pelos seus maridos e que a licença-maternidade e outros benefícios trabalhistas associados à proteção da maternidade estão disseminados na nossa sociedade, mas a reflexão crítica comum ou acadêmica mostra como a opção por cuidar fragilizou socialmente e economicamente as mulheres, colocando-as em um lugar de desvantagem histórica que há muito o movimento feminista luta para superar (Federici, 2021).

Portanto, é banal, ou seja, não é extraordinário ou incomum, que quem cuida não seja valorizado na nossa sociedade. O cuidado é despendido aos mais vulneráveis, crianças, idosos, fragilizados e adoentados, parcela da sociedade que enfraquece a lógica de acumulação de riqueza. Para manejar essa parte da sociedade é necessário que se façam investimentos, muitas vezes a fundo perdido. Numa lógica neoliberal, se esse tipo de investimento se impõe, que seja o menor possível.

A continuidade da nossa humanidade tal como a conhecemos está intrinsecamente ligada às relações de cuidado. Desde o momento em que nascemos, somos seres dependentes de cuidados, começando como crianças e passando por diversas circunstâncias de vida que nos deixam mais vulneráveis.

O trabalho do cuidado não pode ser simplesmente despersonalizado ou invisibilizado. Ele depende do envolvimento subjetivo daqueles que se dedicam a essa tarefa para que efetivamente aconteça.

Como bem descreve Dejours (2022), a mobilização subjetiva para o trabalho se revela forte na maioria dos sujeitos, fazendo com que superem as dificuldades inerentes ao trabalhar e obtenham proveitos simbólicos do seu trabalho. No entanto, essa mobilização subjetiva depende da dinâmica entre contribuição e retribuição. No contexto da enfermagem, os trabalhadores querem contribuir com seu trabalho de cuidado, mas a falta de retribuição adequada por seus esforços, real e simbólica, provoca uma desmobilização subjetiva que culmina, na maioria das vezes, no adoecimento desses profissionais.

Para superar a banalização do mal que afeta o trabalho de cuidado, é fundamental romper com a indiferença em relação à sua desvalorização. A sociedade brasileira deve priorizar o cuidado, legitimando-o como algo essencial, fundamental e inegociável.

Não precisamos de leis que estabeleçam o piso salarial de profissionais de enfermagem; precisamos de leis que legitimem a proteção social, econômica e cultural de quem cuida, simplesmente porque a garantia da existência da humanidade nas próximas décadas está intrinsecamente ligada à valorização do cuidado.

Diante da emergência da pandemia de Covid-19 em 2020, o filósofo francês Edgar Morin, do alto dos seus 99 anos, sem precisar acrescentar mais nada ao legado intelectual que deixará para nós e ocupando a faixa etária de maior risco de morte pelo coronavírus, generosamente dedicou seu valioso tempo para nos alertar enquanto sociedade: “está na hora de mudar de Via” (Morin, 2020; p. 19).

Segundo Morin (2020), a pandemia deu vistas à fragilidade e à precariedade das nossas escolhas enquanto humanidade, mostrando que a livre concorrência e o crescimento econômico que dirigem o mundo ocidental e são considerados condições mestras do aumento do bem-estar social não garantirão a nossa sobrevivência, pois a incerteza faz parte do nosso presente e futuro. É preciso mudar de Via como uma necessidade de regenerar a política nacional, civilizacional, de Terra e de humanidade, de humanizar a sociedade e de ter um humanismo regenerado.

O humanismo regenerado se trata de um humanismo planetário, em que a solidariedade/responsabilidade seja ampliada e comungada pela população global, reconhecendo que o individualismo neoliberal desintegra as comunidades e o Eu desabrocha no desabrochar do Nós.

Pela via do Cuidado temos uma chance de nos regenerar enquanto humanidade. Pelo Cuidado podemos achar caminhos para nos reconhecermos nos momentos mais incertos que aplacarem o destino da nossa sociedade.

O reconhecimento do valor real e simbólico do cuidado, por meio de uma valorização política e econômica do trabalho de Enfermagem, contribuirá para colocar nossa sociedade no rastro da superação da banalização do mal, da regeneração do seu humanismo e manutenção da sua existência planetária.


Referências

Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (2a ed-28). Companhia das Letras.

COFEN. (2023). Enfermagem em Números. http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros

Dejours, C. (2007). A banalização da injustiça social (7 ed). Editora FGV.

Dejours, C. (2022). Trabalho vivo: trabalho e emancipação (2nd ed.). Editora Blucher.

Federici, S. (2021). O patriarcado do salário: Notas sobre Marx, gênero e feminismo (v. 1). Boitempo Editorial.

Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus. Bertrand Brasil.


Maria Regina Martinez é enfermeira, mestre e doutora em Enfermagem. Professora vinculada à Escola de Enfermagem da UNIFAL-MG, ministra disciplinas voltadas para a área de Gestão de Pessoas e de Serviços de Saúde nos cursos de Enfermagem e Medicina. Atualmente, é coordenadora de Prestação de Serviços da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) da Universidade.

 

 

 

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