Mágico vampiro

Dalton Trevisan, 98 anos, é o mais importante escritor brasileiro vivo. Pratica sistematicamente, em seus contos, uma cruel inversão hiper-realista dos dois temas mais batidos do Romantismo, o amor e a morte. A ficção do “vampiro de Curitiba” (apelido devido ao título de um de seus livros) é feita de poucos elementos, explorados de modo tão exaustivo que se torna uma grande surpresa o fato de nunca soarem repetitivos. Seus protagonistas quase sempre se chamam João e Maria, recorrendo o ficcionista a outros nomes apenas quando o força a isso a presença de um número de figurantes excedente à “guerra conjugal” (título de outra coletânea sua) que é um dos núcleos geradores de um microcosmos restrito à capital do Paraná. As exceções à regra, como o protagonista do antológico “Gigi” (de Novelas nada exemplares), foram-se tornando cada vez mais raras à medida que sua poética narrativa se apurava.

Tremendamente apurado, Pão e sangue (1988) é uma radicalização do conceito daltoniano de narrativa curta. Com a mesma meia dúzia de obsessões que ponteia a obra anterior e posterior de Trevisan, são alinhavados nesse magro volume enredos densos e cruéis, às vezes bipartidos ou tripartidos em microversões nas quais diferentes narradores dão depoimentos discordantes: como na vida real, quem estará com a razão? Nessa linhagem, “Quem matou o Caju” vai um pouco além, expondo uma sequência de curtas falas do mesmo protagonista, que a cada passo chega mais perto de confessar sua culpa no assassinato de um companheiro de farra.

A resoluta autorredução dos já radicais modos de reiterar-se a cada livro fica patente, nessa coletânea, principalmente nas quatro séries que Trevisan chama “haicais” – cometendo a extrema licença poética de adaptar uma forma da lírica japonesa notável pela concisão (um haicai tem três versos e, ao todo, dezessete sílabas) aos produtos ficcionais mais curtos que conseguiu obter – logo depois de tentar o romance com A polaquinha (1985), tendo, porém, produzido um extenso (ainda que excelente) conto no qual amplifica as fixações de sempre, que são um prato cheio para a psicanálise das motivações autorais.

O principal bordão aqui é a infelicidade amorosa que, fomentada pelo convívio obrigatório do casamento, tem como desfecho o crime passional. Já no primeiro conto, a revanche da mulher contra seu marido violento atinge uma espécie de paroxismo báquico, o qual se reapresentará por variações, mais adiante, em outros textos. As mulheres violentadas de Trevisan reclamam, com uma frequência que não há como supormos casual, que o marido queria “fazer de tudo, até o que as da rua têm vergonha”, sendo o ato sexual desrespeitoso uma extensão da convivência moralmente miserável que distingue, sem exceção, os casais dessa sequência ficcional. A infelicidade no matrimônio é recorrência tão garantida quanto o licor de ovo e a broinha de fubá, sempre mencionados de passagem por algum narrador ou personagem. Um dos “haicais” resume, do ponto de vista masculino, a tópica daltoniana:

– Com essa megera não é que eu casei.
– …
– Me distraí um instante, a mulher foi trocada.
– …
– Em vez da noivinha dos meus sonhos, essa quem é, roncando a meu lado, o bigodinho
de meu sogro no nariz torto de minha sogra?

Outro, do mesmo tipo (é uma história completa, o “haicai”):

Em agonia, gemendo e chorando, afasta a mão pesada da velha:
– Deixe para me agradar depois de morto.

E um terceiro, com que Trevisan intervém (fazendo as vezes de crítico literário bem equivocado, já pela nomeação do narrador velho com seu apelido de criança) no infindável debate suscitado pelo foco narrativo do romance machadiano:

Se Capitu não traiu Bentinho, Machado de Assis chamou-se José de Alencar.

Mas nenhum é tão cruelmente engraçado quanto este:

Assustada, a velha pula da cadeira, se debruça na cama:

– João. Fale comigo, João.

– Bruuuxa… diaaaba…

– Ai, que susto. Graças a Deus.

O ideal da prosa daltoniana, percebe-se fácil, é regressar à forma lapidar dos grandes poemas. Mas há enredos que precisam ser feitos acontecer, e por isso o contista movimenta as eternas velhas peças, ocasionalmente inserindo uma nova que, originária de outro jogo, acaba se encaixando perfeitamente no seu. Por exemplo, a modelar narrativa rápida, cheia de elipses e inversões sintáticas, mas que compõe uma sucessão temporal reconhecível, evidenciadora de invejável perícia, é às vezes substituída por um poema relativamente longo como “Canção do exílio” – usem essa nas provas de vestibular, parem de repetir aquela questão óbvia com a paródia manjadíssima e sem graça de Oswald de Andrade, logo ele que é tão espirituoso! – ou “Balada do Vampiro”. Ou mesmo pelo poema curto “Minha vida meu amor”, que consiste na transcrição da carta de uma suicida, cujo arremate é o pedido de desculpas pela imperícia gramatical.

Mostruário perfeito das virtudes de um estilo aferrado desde sempre aos mesmos fundamentos, Pão e sangue se equipara às melhores reuniões de contos do escritor paranaense, A trombeta do anjo vingador (1977) e O pássaro de cinco asas (1996). Ninguém, por mais que já tenha lido Dalton Trevisan, estará totalmente preparado para esse livro onde um dos ápices da ambição é o personagem querer, para conquistar sua amada, ser “maior que o motociclista do Globo da Morte”; livro feito de histórias que inscrevem a condição humana numa pauta feita da dor de desejar sem esperança. Nesse inventário de misérias morais, cabe até o monstruoso sacrificador de animais e crianças a odiosas entidades ocultas ou imaginárias. É um livro pesado, Pão e sangue, apesar de escrito com tanta leveza – o “vampiro” mostra aí toda a sua magia.

Título: Pão e Sangue
Autor: Dalton Trevisan
Gênero: Contos
Ano da edição: 1988
ISBN-10: 8510318565
ISBN-13: 978-8510318563
Selo: Grupo Editorial Record

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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