Waldir Severiano de Medeiros Júnior¹
O problema do mérito, não é que ele não existe, enquanto produto do esforço, da vontade empenhada, da aplicação e da determinação tenaz. O problema é achar que esforço, empenho, aplicação e tenacidade devam-se pura e simplesmente a algo como o livre-arbítrio e ao seu correto exercício (HARRIS, 2012).
Ora, o livre-arbítrio, que, a despeito de suas variações terminológicas, significa senão a pretensão a uma liberdade absoluta da vontade, ou seja, a uma liberdade absoluta de escolha, logo, a uma vontade que seria uma espécie de causa não causada, é pouco mais do que provável que não exista (MAWSON, 2011; e SCHOPENHAUER, 2002, p. 35-132).
As causas do mérito (como esforço, empenho, aplicação e tenacidade) advindo, na realidade, de condicionamentos disciplinares aprendidos (repita-se: aprendidos) no ambiente socioexistencial do indivíduo, sobretudo o familiar e o escolar, sempre a par (repita-se: sempre a par) dos caracteres naturais, e por vezes até das chamadas “predisposições favoráveis”, de cada um (SOUZA, 2022, p. 353-407; e RIDLEY, 2004).
Noutros termos: é a interação complexíssima e altamente idiossincrática entre as condições ambientais (lato sensu) da criatura humana e seus atributos ônticos, naturais, e não um simplório, apelativo, etéreo e absconso livre-arbitrio, o pano de fundo do (de)mérito (FUSTER, 2014).
Por isso que quem invoca o livre-arbítrio padece ou de ingenuidade, ou de pragmatismo tosco, ou, ainda, de má-fé, quando não de cinismo, feito o que acontece com a maior parte dos “vencedores” adeptos da meritocracia – e do punitivismo, afinal, comumente passa-se com a culpa o mesmo que com o mérito, só que em sentido inverso… meritocracismo e punitivismo são anverso e reverso do livre-arbitrismo (CARUSO, 2021).
De fato, muito frequentemente, à falta de DIREITOS fundamentais efetivos, é o DINHEIRO nu e cru que, em “terrae brasilis” por exemplo, viabiliza (compra, financia) as condições de vida propícias ao “mérito”. Simples assim.
Não que o recurso do dinheiro, advirta-se de passagem, seja necessariamente errado, ainda mais quando empregado, por exemplo, pelo Estado Democrático de Direito, para custear, na forma de tributos, direitos fundamentais (ÁVILA, 2015), ou, como é o caso em questão, por aquele particular agraciado pela sorte de possuí-lo, para contornar a falta ou má prestação destes.
A bem da verdade, aqui, é precisamente no encarar o dinheiro (ou qualquer outra coisa que o valha) não como ele se apresenta, a saber, não mais que um recurso de contorno (de escape, de esquivo) das carências ou deficiências sociais inacessível a todas as pessoas, mas como o “próprio”, “único”, “natural”, “melhor” ou “principal” caminho de promoção das condições de vida do mérito, que reside o erro, ou, se se quiser, a alienação, da mentalidade meritocrática, cujo representante de praxe, como não poderia de ser, é o burguês – aliás, até mesmo, para não dizer sobretudo, o pequeno-burguês (MARX, 2012; e WEBER, 2004), em especial aquele vulnerável a doutrinas livre-arbitristas de condão fundamentalista (e.g. teologia da prosperidade) (SOUZA et. al., 2010, p. 311-348).
Donde o caráter distorcido, injusto e perverso do sistema meritocrático, quando mais não seja porque os bens da vida afetos aos direitos fundamentais, que como tais deveriam estar aquém do mérito e funcionando como sua condição de possibilidade e legitimidade, tornam-se, eles também, na medida em que obtidos e usufruídos praticamente só pelos detentores de poder aquisitivo hábil para tal, uma questão de “mérito” (SANDEL, 2021).
A propósito, a meritocracia, ao fim e ao cabo, termina por fazer até da sobrevivência, do mínimo existencial, da dignidade, uma questão de “mérito”, “digna de aplausos” (vide a honra comovida do pobre honesto).
No entanto, mesmo que por modelos de explicação e justificação vários, de há muito que se sabe que bens da vida como, por exemplo, renda digna, educação (no sentido pleno do termo), saúde, alimentação, moradia e segurança, para ficar nos mais óbvios, não constituem uma questão de “mérito” (dos agraciados pelo acaso), mas sim de direitos fundamentais (de todas as pessoas) (FERRAJOLI, 2007).
Sendo certo que, somente pela implementação destes é que a reinvindicação do mérito logra fazer-se, de um lado, justa (ou, de todo modo, menos injusta), considerando-se que a todas as pessoas são asseguradas condições minimamente satisfatórias ao desenvolvimento e aquisição de habilidades para feitos meritórios; e, de outro lado, mais real, verdadeira (ou, de todo modo, menos ilusória, enganosa), assente que, num cenário em que as oportunidades de cultivo das capacidades não se restringem aos privilegiados e aos excepcionais, antes, são garantidas a todas as pessoas, as chances de florescerem realizações genuinamente meritórias, por via de consequência, aumentam quantitativa e qualitativamente (RAWLS, 2016, p. 65 e ss.).
Por sinal, o problema da autenticidade do mérito manifesta-se mais vivo à consciência nos casos em que sua aferição ocorre em contextos de competição – cuja inevitabilidade, aliás, ao contrário do que faz crer o ethos capitalista, não precisaria ser onipresentemente opressora (ONFRAY, Introdução, 2013, p. 13-32) –, como, por exemplo, vestibulares, concursos, processos seletivos, concorrências, jogos e quejandos.
Mas é precisamente aí que se verifica também que, descontada a irredutibilidade de certa margem de sorte/acaso, as pessoas estão tanto mais inclinadas a reconhecer o mérito do vencedor – inclusive com a sociedade podendo esperar ser tanto mais bem servida – quanto maior se mostrar o mérito, ou menor o demérito, da concorrência (SAPOLSKY, 2023).
Portanto, mais não seria preciso dizer para se dar conta de que a crítica da meritocracia não implica na sua extinção (se é que alguém já tenha seriamente proposto algo assim), e sim na práxis daquela única concepção de meritocracia que, por achar-se desvencilhada da injusta e ilusória ideologia do livre-arbítrio (KELSEN, 1993, p. 87), pode pretender-se justa e real.
Com efeito, justa, porque orientada à neutralização, o mais possível, das arbitrariedades do acaso, a começar por aquelas diferenças econômicas abissais comprometedoras da garantia dos direitos fundamentais, a qual é a pedra angular de qualquer justiça social digna desse nome (CANOTILHO, 2003, p. 377 e ss.); e real, de vez que o mais possível oportunizadora de excelências, digamos, nem tanto acidentais, por fortuna, mas substanciais, por virtú.
Referências Bibliográficas
ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo, SP: Malheiros, 2015. 214.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra/Portugal: Edições Almedina, 2003.
CARUSO, Gregg D. Rejecting retributivism: Free will, punishment, and criminal justice. New York: Cambridge University Press, 2021.
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2007.
FUSTER, Joaquín M. Cerebro y libertad: Los cimientos cerebrales de nuestra capacidad para elegir. Trad. Joan Soler Chic. Barcelona: Ariel, 2014.
HARRIS, Sam. Free will. New York: Free Press, 2012.
KELSEN, Hans. A democracia. Trad. Ivone Castilho Benedetti; Jeffesrson Luiz Camargo; Marcelo Brandão Cipolla; e Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
MARX, Karl. As lutas de classes na França: De 1848 a 1850. São Paulo: Boitempo, 2012.
MAWSON, T. J. Free will: A guide for the perplexed. [s.l.]: Continuum, 2011.
ONFRAY, Michel. Introdução. In: Contra-história da filosofia: Eudemonismo social. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 13-32.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
RIDLEY, Matt. O que nos faz humanos. São Paulo: Record, 2004.
SANDEL, Michael. A tirania do mérito: O que aconteceu com o bem comum? Trad. Bhuvi Libanio. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
SAPOLSKY, Robert Maurice. Determined: A science of life without free will. New York: Penguin Press, 2023.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre la libertad de la voluntad. In: Los dos problemas fundamentales de la ética. Trad. Pilar Lopéz de Santa María. 2 ed. Madri: Siglo XXI, 2002, p. 35-132.
SOUZA, Jessé; ARENARI, Brend; TORRES, Roberto. Os batalhadores e o pentecostalismo: Um encontro entre classe e religião. In: SOUZA, Jessé (Org.). Os batalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 311-348.
SOUZA, Jessé. Conclusão: A má-fé da sociedade e a naturalização da ralé. In: SOUZA, Jessé (Org.). A ralé brasileira: Quem é e como vive. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022, p. 353-407.
WEBER, Max. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2004.
Waldir Severiano de Medeiros Júnior é professor substituto de disciplinas jurídicas no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG. Formado em Direito e doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, o docente coordena o Grupo de Estudos “Qual Direito? Estudos Sobre Direito e Relações de Poder”. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito, Direito Público e Direito das Coisas/Reais.