O outro nome do Apocalipse

Platão, em seu diálogo Fedro, deplora a invenção da escrita. O filósofo associava-a à decadência intelectual, em sua opinião decorrente de os pensadores não precisarem mais decorar nada, pois que tudo podia ser conservado por meio dos textos, e em consequência as pessoas não mais saberiam o suficiente sobre o mundo e os problemas humanos. Ora, podemos conhecer os diálogos de Platão porque ele os escreveu, e desde seu mais brilhante discípulo, Aristóteles, foi construída ao longo de muitos séculos a ideia que até bem pouco tempo atrás o Ocidente tinha do que fossem o mundo e a humanidade. Todos que influíram na formação dessa ideia fizeram-no por escrito: Galileu, Bacon, Newton, Darwin, Einstein e muitos outros cientistas até Stephen Hawking, isso para não falar de filósofos e poetas. A complexidade do mundo aumentou tanto desde a cultura clássica que se tornou inconcebível armazenar num cérebro todas as informações importantes.

Pensador da cultura contemporânea e ficcionista nas horas vagas, o paranaense Jair Ferreira dos Santos inverte, de certa maneira, o problema proposto pelo filósofo grego. Quase dois milênios e meio os separam.

No livro Breve, o pós-humano (2003), já tornado um pouco antigo pelo galope da história recente, Ferreira dos Santos faz um instigante passeio pelo desolado panorama cultural batizado por Ihab Hassan, no longínquo ano de 1977, de “pós-humanismo”. O conceito, em resumo, se faz da convergência de variados vetores da crítica cultural autointitulada pós-moderna, todos apontando para uma alegada falência do humanismo, nascido justamente dos escombros da cultura grega assimilada pelo Império Romano e depois pelo catolicismo. A maneira de pensar o mundo fundada numa frase do sofista Protágoras (século V a.C.), “O homem é a medida de todas as coisas”, não seria mais válida nas sociedades pós-industriais, ou seja, nas economias capitalistas que emergiram contemporaneamente à globalização e à consciência crescente da inviabilidade de um modo de vida fundado no consumo cada vez mais acelerado de recursos naturais. Só mesmo Trump et caterva ainda negam o aquecimento global provocado pela generalização planetária do american way.

O itinerário começa com um capítulo que enfatiza problemas inculturais brasileiros (ou desculturais, ou anticulturais, como se queira). Ele relembra, por exemplo, certo programa infantil dos anos 1980 que “premiava” com livros os perdedores de uma competição. Não tira todas as possíveis conclusões do fato, mas prossegue, ao longo de 224 páginas, numa interessante perambulação que tem muito a dizer sobre como, por exemplo, o Brasil chegou ao ponto de entronizar politicamente a aberta e assumida estupidez. Ao longo de tal perambulação, vislumbra supostos superpoderes influenciais de Galvão Bueno e atribui discutível potência crítica a manifestações artísticas tribais surgidas à margem da cultura escrita. Sobra até espaço para uma dissertação sobre a “impossibilidade de não-poesia”.

Quando parte para os efeitos do pós-humano na literatura – este parece ser o campo que mais lhe interessa e o que ele melhor domina –, o crítico deixa de lado o panorama brasileiro e prefere falar de autores estadunidenses. O mesmo já ocorria em seu livrinho O que é pós-moderno (1986), um sucesso de vendas na célebre coleção Primeiros Passos, da lendária editora Brasiliense; fica a impressão de que Ferreira dos Santos não enxerga na produção literária brasileira – ao contrário de tantos outros estudiosos – efeitos palpáveis de uma dinâmica muito evidente na cultura dos Estados Unidos (ele diz “cultura de massa” em vez de indústria cultural, expressão posta em circulação pela Escola de Frankfurt, que é muito mais exata). Ou prefere ler em inglês. Não importa: sua rápida apresentação das obras ficcionais de Robert Coover, Tom Robbins e Carl Hiaasen vale por si – quem quiser saber a quantas anda o relógio pós-histórico da ficção certamente lucrará muito com a leitura, para citar uma só entre as obras resenhadas, do politicamente incorretíssimo Espancando a empregada (1982), de Coover, que tem edição brasileira. Para leitores mais interessados em conferir se há pós-humano ou pós-moderno na literatura brasileira, valeria mais ler um pouco de Sérgio Sant’Anna ou o amalucado Panamérica (1967), de José Agrippino de Paula.

O pós-humano não sai do livro de Ferreira dos Santos muito bem definido, embora não se possa negar que a semeadura de perplexidades em estilo veloz feita pelo autor, pontilhada por sintagmas curiosos como “solipsismo libidinal” e “litania dinamitadora”, ou até meio perigosos como “arquétipos do presente” e “utopistas distópicos”, seja boa contribuição para que a gente ao menos se formule a pergunta: tem algo de bom nisso tudo?

Há quem veja benefícios palpáveis na “inteligência” artificial do corretor que só corrige o que está certo, assim como houve pessoas dispostas a celebrar a derrota de um famoso enxadrista russo, em 1996, para o supercomputador Deep Blue. Os involuntários cavaleiros do Apocalipse só conhecem de orelhada o último livro da Bíblia.

De pós-humanidades que talvez sejam mais relevantes, o livro pouco fala. Não resulta dele a desejável síntese das mutações que têm revertido grande parte da humanidade ao pré-humano: analfabetos funcionais e ignorantes totais dos rudimentos da matemática e da lógica, que formam a maioria da população em alguns países, sendo o Brasil disparadamente campeão nesse quesito acabrunhador. Mas não resta dúvida de que Breve, o pós-humano pode ser uma leitura útil a quem pretenda começar a compreender as verdadeiras causas do esvaziamento do conceito de civilização, de natureza econômica (basta retornar à Ideologia alemã, de Marx e Engels): os donos do mundo descobriram há décadas que seres “pós-humanos” dotados apenas da mínima capacidade cognitiva podem perfeitamente operar rotinas, e quase tudo nas sociedades atuais consiste em operar rotinas.

Parece que existe mesmo um “pós-humano”. Sua teorização talvez tenha começado no pós-guerra com dois autores de língua alemã: Theodor Adorno e Günther Anders. O primeiro, em seu livro Minima moralia (1951), opinava que as mentes fabricadas industrialmente pelos veículos de comunicação a serviço de poderes políticos e econômicos não mereciam mais ser qualificadas de indivíduos, por lhes faltar exatamente a individualidade. Pesou muito na reflexão de Adorno, a observação do totalitarismo nazista, que derivou em grande parte do aparato de doutrinação desenvolvido pelo ministro de Hitler para a propaganda, Joseph Goebbels. Anders, um especialista em Kafka, escreveu A obsolescência do homem (1956), cujo título já diz tudo: no mundo modelado pelas necessidades humanas, as pessoas se tornam cada vez mais desnecessárias, sendo substituídas por máquinas e sendo relegadas ao papel de objetos de um mecanismo social que funciona com base em lógica própria, redutível, em última análise, à otimização do lucro. Chaplin havia retratado bem esse processo no filme Tempos modernos (1936).

Um pouco mais de História não faria mal a Breve, o pós-humano. Como propõe Giorgio Agamben, ser verdadeiramente contemporâneo é estranhar a época em que se vive. Tal estranhamento falta a quem discuta o “pós-humano” como se fosse algo muito normal, passível de virar outra moda acadêmica.

Título: Breve, o pós-humano
Autor: Jair Ferreira dos Santos
Gênero: Crítica literária
Ano da edição: 2003
ISBN: 8526504606
Selo: Francisco Alves

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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