Conteúdos étnico-raciais abordados em livros didáticos do Novo Ensino Médio ainda apresentam lacunas, aponta pesquisa de iniciação científica

Estudo reforça a necessidade de professores terem acesso a outras referências e materiais didático-pedagógicos para promover a educação antirracista

Em 27 de fevereiro, celebra-se o Dia Nacional do Livro Didático como forma de homenagear uma das ferramentas fundamentais para a formação educacional dos estudantes. Na UNIFAL-MG, um projeto de pesquisa de iniciação científica analisou o impacto da Lei nº 10.639/2003 nos livros didáticos de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. O objetivo da pesquisa é compreender como os conteúdos étnico-raciais são abordados nos materiais, especialmente após as mudanças no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) com a implantação do Novo Ensino Médio em 2017.

A motivação para desenvolver o projeto partiu da formação familiar e dos estudos desenvolvidos pela acadêmica acadêmica Giovanna Costa na UNIFAL-MG. (Foto: Dicom/UNIFAL-MG)

Quem se debruça sobre a temática é a acadêmica Giovanna Deodoro da Costa, do 8º período do curso de Geografia (Licenciatura), sob a orientação da professora Ana Lúcia da Silva, do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL). O projeto envolve a discussão da lei, que estabeleceu em 2003 as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

Conforme a discente, a motivação para desenvolver o projeto “Os 20 anos da Lei nº 10.639/2003 e a educação antirracista: análise de livros didáticos de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do Novo Ensino Médio” partiu da sua formação familiar e dos estudos desenvolvidos na UNIFAL-MG, nos quais teve oportunidade de vivenciar o ambiente escolar nas atividades do Estágio Curricular Supervisionado, dos programas de formação de professores e professoras fomentados pela Capes, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e o Programa Residência Pedagógica.

“Desde a adolescência, meu pai teve comigo conversas esclarecedoras sobre o racismo”, conta. “Ao realizar a disciplina de Educação e Relações Étnico-Raciais, ministrada pela professora Ana Lúcia, no curso de Geografia, compreendi de forma ainda mais profunda a importância da prática docente no processo de uma educação antirracista”, compartilha.

A discente acrescenta que sua experiência no estágio permitiu identificar o quanto o livro didático é utilizado em salas de aula. “Pude notar que o livro didático é o principal recurso didático-pedagógico utilizado pelos docentes no processo de ensino-aprendizagem. Todos os professores e as professoras utilizavam o livro didático. Uns como texto base. Outros de forma complementar”, acrescenta.

O objeto de pesquisa do trabalho orientado pela professora Ana Lúcia da Silva foi a coletânea “Diálogo Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, contemplada pelo PNLD de 2021. (Foto: Dicom/UNIFAL-MG)

Somada a essa constatação prática, a ideia de trabalhar com os livros didáticos também foi inspirada em um artigo produzido para a disciplina de Geografia da África, ministrada pelo professor Márcio Abondanza Vitiello, do Instituto de Ciências da Natureza (ICN). Neste trabalho, a proposta era realizar uma análise de como os conteúdos de História da África são tratados nos livros didáticos anteriores e posteriores a Lei nº 10.639/2003.

Sob a orientação da professora Ana Lúcia da Silva, a discente desenvolveu o projeto de iniciação científica voluntária, no qual analisou a coletânea “Diálogo Ciências Humanas e Sociais Aplicadas” dos autores Julieta Romeiro, Maria Raquel Apolinário e Ricardo Melani, Silas Martins Junqueira, publicada pela Editora Moderna e contemplada pelo PNLD de 2021.

Tal coletânea tem sido utilizada na Escola Estadual Dr. Napoleão Salles, em Alfenas, onde Giovanna Costa realizou os Estágios Curriculares Supervisionados obrigatórios. “A Lei nº 10.639/2003 e as epistemologias negras, ou seja, os conhecimentos e saberes de intelectuais negros e ativistas do Movimento Negro fundamentam a análise dos livros didáticos”, explica. “Intelectuais negros como Abdias do Nascimento, Cida Bento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jarid Arraes, entre outros e outras foram lidos e estudados na disciplina ‘Educação e Relações Étnicos-Raciais’”, contextualiza.

Foram selecionados e analisados os conteúdos dos livros por eixos temáticos, o que evidenciou lacunas na abordagem de importantes temas. (Foto: Dicom/UNIFAL-MG)

Além de realizar uma leitura aprofundada da Lei nº 10.639/2003 e também da Lei nº 13.415/2017 a qual regulamenta o Novo Ensino Médio (NEM), a acadêmica fez um levantamento bibliográfico da literatura antirracista presente nos livros didáticos do NEM, a fim de observar quais autores negros são citados nos livros didáticos analisados.

“Depois de folhear as páginas dos livros didáticos, alguns eixos temáticos foram definidos para realizar a análise, tais como: História da África e cultura; O povo negro na diáspora africana; Movimentos sociais no Brasil e na América Latina: movimento negro, e Movimento Negro na América do Norte”, diz.

A partir dos eixos temáticos, foram selecionados e analisados os conteúdos apresentados, o que evidenciou lacunas na abordagem de importantes temas. “De uma forma geral, até o presente momento, verificamos que os livros contemplam de certa forma a Lei nº 10.639/2003, no entanto de forma muito condensada”, afirma.

Necessidade de formação inicial e continuada em História da África e Cultura Afro-Brasileira
Fragmentos do conteúdo antirracista nos livros didáticos: a filósofa Sueli Carneiro, na primeira imagem; Movimento Black Lives Matter ou Vidas Negras Importam nos EUA, na segunda imagem, e Movimento Vidas Negras Importam no Brasil, na terceira imagem. (Fonte: Livro didático Ciências Humanas e Sociais Aplicadas volumes 4 e 6, de Julieta Romeiro, Maria Raquel Apolinário, Ricardo Melani, Silas Martins Junqueira, publicado pela Editora Moderna, em 2021).

No volume analisado, de acordo com a autora do trabalho, a temática aparece em dois capítulos dos livros intitulados “Lutas sociais e reflexões sobre a existência”. Nestes, a desigualdade social é associada à discriminação. As obras também retratam o movimento estadunidense ‘’Black Lives Matter’’, mas de forma superficial.

“Esse volume em questão também tem um panorama geral do movimento negro no Brasil. O livro citou a filósofa Sueli Carneiro, o que é muito importante considerando a importância dessa ativista negra e filósofa, um dos ícones do movimento de mulheres negras, fundadora do Geledés – Instituto da Mulheres Negras (1988). Porém, o texto do livro didático é fragmentado e não apresenta de forma ampla a biografia de Sueli Carneiro”, avalia.

Conforme Giovanna Costa, outro volume analisado apresentou um grande referencial teórico sobre a temática no capítulo “Dilemas Repúblicas Latino-Americanas’’, com conteúdos que abrem caminhos para a educação antirracista. O capítulo 16 traz contribuições sobre conceitos para o estudo das relações étnico-raciais como: racismo, preconceito e discriminação; relatos de vivências; democracia racial e branquitude.

No entanto, segundo a pesquisadora, o livro não cita a autora Cida Bento, estudiosa do assunto e autora do livro ‘O pacto da branquitude’, lançado em 2022. “Por mais que esse capítulo seja muito rico em trazer alguns principais conceitos da discussão étnico-racial, o mesmo traz esses conteúdos com pouca profundidade”, analisa.

Em ‘’América: Povos, Territórios e Dominação Colonial’’, Giovanna Costa também observou a predominância da visão colonial. “Nesse livro se destacou a Filosofia africana em poucas páginas do livro, enquanto que a Filosofia europeia ganhou diversos capítulos, sendo mais detalhada”, aponta.

Para a acadêmica, diante dessa realidade, é importante que docentes tenham uma formação inicial e continuada que contemplem estudos da História da África e Cultura Afro-Brasileira, e de Educação e Relações Étnico-Raciais, para aprofundarem os estudos realizados em salas de aulas, e não se limitarem aos conteúdos apresentados nos livros didáticos.

“É interessante que professores e professoras tenham acesso a outras referências e outros materiais didático-pedagógicos que proporcionem a Educação antirracista, para que as lacunas dos livros didáticos não deixem de ser trabalhadas”, indica.

Ao comentar as contribuições da pesquisa, a autora enfatiza que as produções da intelectualidade negra permitem construir caminhos para a educação antirracista e das relações étnico-raciais. “Essa bibliografia possibilita ver a aplicabilidade da Lei nº 10.639/2003, identificar as lacunas nos livros didáticos, verificar em que podemos contribuir para a educação e relações étnico-raciais, combatendo-se o racismo e o epistemicídio, e por fim, fomentar a descolonização do currículo escolar, a proposta pedagógica curricular, a formação docente e a prática didático-pedagógica”, argumenta.

A autora do estudo salienta ainda que o acervo de livros da Biblioteca da UNIFAL-MG está em processo de expansão com a aquisição de livros de intelectuais negros. “É uma política importantíssima para disponibilizar referências que propiciem a educação antirracista”, frisa.

Repercussão dos resultados da pesquisa

A comunidade científica já vem acompanhando os resultados do trabalho de Giovanna Costa e da professora Ana Lúcia da Silva, que têm sido divulgados por meio de apresentações em eventos científicos, como no 32º Seminário Nacional de História (ANPUH Nacional) “20 anos depois – A Lei nº 10/639/2003”, ocorrido de forma on-line em julho de 2023.

“Estamos nos organizando para a divulgação desses resultados por meio da publicação de capítulo de livro e/ou artigo científico”, conta Giovanna Costa.

Alguns resultados da pesquisa de iniciação científica estão sendo utilizados na redação do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da discente, sob orientação da professora do curso de Geografia, Sandra de Castro de Azevedo, o qual também utiliza da Lei Nº 10.639 de 2003, mas voltado à ideia de formação inicial de professores e professoras dos cursos de formação de docentes de Geografia nas instituições públicas de ensino superior do estado de Minas Gerais.