Narciso estropiado

Corre nos arraiais literários, onde ainda os há, a lenda de que Jorge de Lima quase recebeu o prêmio Nobel de literatura. Esse quase, pelo visto, consistiu unicamente no empenho de um escritor sueco, membro da academia encarregada do assunto, em pautar a premiação do poeta alagoano para o final dos anos 1950. Por azar, Jorge de Lima morreu em 1953.

Não se discute muito: sua principal obra é o poema Invenção de Orfeu (1952), pretendida “teodiceia”, uma espécie de epopeia católica. Trata-se de um aglomerado de poemas cuja unidade é mais temática do que estrutural. A rigor, ali existem uns oito ou dez ótimos sonetos, o restante não fica tão acima dos “poemas negros” que, com certa má vontade crítica, podem ser considerados uma versão meio populista de aspectos evidentes na ficção de José Lins do Rego. “Essa negra Fulô”, por exemplo, texto obrigatório nas velhas antologias escolares, é uma discutível mitificação dos poderes eróticos da mulher negra, que o poeta parece ter conhecido pelo mesmo ângulo de “menino de engenho” de seu colega paraibano. A outra vertente da poesia de Jorge de Lima, na qual convergem catolicismo e surrealismo, fica a dever bastante à mesma fase na obra de seu amigo e parceiro Murilo Mendes.

Para princípio de conversa, em matéria de poema moderno de tom épico nada se iguala, na literatura brasileira, ao Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles. O Nobel não foi dado, e aliás nem sempre é dado a quem o mereça. Cecília, para muitos, estaria mais qualificada para o receber. Drummond, nem se fala. E ainda havia Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, o próprio Murilo Mendes – par falar somente de poetas. A discussão não vem ao caso. Mas vem ao caso ler a obra de Jorge de Lima, até para deslindar versões fantasiosas sobre sua suposta genialidade, pois a literatura não ganha nada com essas mitificações. O que ele parece ter sido mesmo é um sujeito muito simpático e bem relacionado – que, obviamente, tinha muito talento e cultura, requisitos indispensáveis, naquela época, para a mínima notoriedade literária.

Assim como a principal obra do autor, sua ficção não está acima de qualquer crítica. Vejamos o romance A mulher obscura (1939), publicado numa época em que a literatura brasileira vivia o princípio de seu período mais brilhante (exceto por Machado de Assis, morto em 1908); época que se encerraria pela coincidência não muito coincidente de uma ditadura militar com a massificação do povo por meio da TV. Tempo em que brilharam Bandeira, Drummond, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, o popularíssimo baiano Jorge Amado e muitos outros. Ora, nesse quadro A mulher obscura é uma produção bastante singela, ficando muito aquém de O anjo (1934) e Calunga (1935), os romances anteriores de Jorge de Lima.

O narrador é Fernando, um típico protagonista burguês cujo drama interior gira – o leitor demoraria a descobrir isso se não fosse avisado por um personagem, o padre Josué – em torno da procura pela mulher ideal. Fernando começa sua história com uma rememoração (modestamente) à Proust, passando depois a um afresco de costumes interioranos que, se tem sua graça, quebra o ritmo narrativo por destoar das paisagens interiores em que consiste a essência do romance. Constança, menina que a princípio suporíamos ser a amada imortal, desaparece por páginas e páginas e só volta à cena como moribunda. Bem lá para o final da narrativa, ficamos sabemos que ela e o narrador, mais do que namorados, haviam sido amantes.

A ação se passa em Vila Madalena de Sumaúma, que foi a primeira capital de Alagoas e hoje tem o nome do marechal Deodoro da Fonseca, em homenagem a seu ilustre filho, o primeiro chefe golpista da história brasileira. Os vaivéns do narrador podem parecer hábeis recursos técnicos, mas na verdade evidenciam certa falta de rumo, assim como o lastro psicológico de certos personagens vacila. Um desses é o juiz, mistura de fofoqueiro erudito, marido publicamente traído e porta-voz de um positivismo mais do que requentado, no qual entra certa teoria sobre a necessidade da depuração racial do Nordeste, velharia tão antiga quanto o pregão da sensualidade das mestiças: Fernando não se cansa de as rememorar lavando roupa e tomando banho de rio.

A narração sofre desvios ao sabor da busca amorosa do protagonista, que em certo ponto se volta para a mulher do mencionado juiz, Irina, e depois para a inglesa Hilda, cujo marido administra uma fábrica em Madalena. Quando Constança morre de tuberculose, o rapaz se desmancha em arrependimentos dos quais antes não havia demonstrado nenhum sinal. Ele viaja ao Recife, de avião, e nessa viagem se torna amante de Irina. Mais próximo ao desfecho do romance, apaixona-se por Hilda depois de uma intensa crise espiritual, invade a alcova da mulher casada e é escorraçado por ela, acabando por refugiar-se na fazenda de um tio – de que até então não tivéramos notícia. Em meio a tudo isso: a agonia e a morte de Constança, capítulos feitos de cartas – típico e fácil recurso de romântico retardatário – e um transe místico, afinal interrompido pelo assassinato do artista homossexual Laécio, amigo de infância de Fernando.

Vingança de um despossuído outrora humilhado pelo pai de Laécio (outro coronel nordestino, assim como havia sido o pai de Fernando), o episódio homicida recupera o nervo social de todo abandonado ao longo de grande parte da narrativa. Mas a questão é novamente deixada de lado, para em seguida surgir uma referência bastante desmotivada à face de Cristo, que o narrador ensaia misturar com sua busca da mulher ideal. Confusa procura, como se vê, e tal confusão afeta a própria segurança técnica do enredo.

Não é que o livro não contenha passagens ótimas. Elas ocorrem quando Jorge de Lima dá asas à imaginação de poeta, mas constituem exceções num percurso cheio de hesitações e mudanças de rumo que nada têm a ver com algum projeto narrativo nítido. Para contrabalançar tais passagens, algumas até brilhantes, o escritor se permitiu descuidos de acabamento que também afetam a lógica do relato. Por exemplo, no episódio da invasão ao quarto de Hilda, a propriedade conta com um guarda noturno, cujo cão briga com o de Fernando, fazendo significativa arruaça, mas o dito vigia não comparece à cena. Por onde andaria ele? Não nos explica o narrador.

No desfecho, esse Santo Agostinho dos pobres que é o narrador se concede a redenção religiosa (bem vaga, por sinal), já anunciada em sua autocomplacente definição da “procura de Raquel através das Lias” que lhe justifica a tibieza de caráter. Por sinal, o significado dos fatos é constantemente interpretado retroativamente em favor da imagem de Narciso estropiado que Fernando vai compondo. Não estranha que seu conceito de adolescência seja um bocado expandido – pelos cálculos de qualquer leitor atento, depois de tantas e erráticas peripécias, devem ter passado anos suficientes para que ele pudesse considerar-se um homem.

Seria excessiva crueldade, mas a comparação adequada para o narrador de A mulher obscura seria aquele Paulo Honório de São Bernardo (1934), o primeiro grande livro de Graciliano Ramos.

Título: A mulher obscura
Autor: Jorge de Lima
Gênero: Romance
Ano da edição: 1959
Selo: Agir

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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