“Pra não dizerem que não falamos de flores”: sobre apropriações do 8 de março

Fernanda Onuma¹
Cilene Margarete Pereira²
Aline Lourenço de Oliveira³

Uma vez por ano, ainda que com algum ressentimento (“cadê o dia dos homens”?), mulheres são lembradas e recebem congratulações e até flores e bombons das mesmas pessoas e instituições que as violentam de formas sutis ou diretas no restante do ano. Mas não faltará quem critique a preferência, por parte das mulheres, por equidade entre os gêneros todos os dias do ano no lugar de um buquê ou de uns chocolates reservados à data. Trata-se de uma data de luta, de reivindicação de mulheres por dignidade, melhores condições de vida e de trabalho. Um dia para conferir visibilidade às lutas de diferentes mulheres, em movimentos distintos, ao longo dos anos.

Curiosamente, mesmo na data em que mulheres cis e trans deveriam ser mais lembradas e visíveis[1], a maioria das entrevistas em telejornais, em “celebração” da data, são feitas com homens. Analisando a cobertura midiática dos principais telejornais do Brasil e em Portugal para o dia 8 de março, no período de 2017 a 2019, Sandra Nodari[2] percebeu que os homens foram ouvidos como as principais fontes de informações para reportagens. Como é bom termos aliados tão comprometidos com nossa luta, não é mesmo? (Contém ironia).

A autora aponta ainda para certa mitologia liberal que ronda o 8 de março e que pode nos ajudar a refletir sobre o porquê de mulheres terem menos espaço até para tratarem de uma data que, a princípio, buscaria contribuir para dar visibilidade a suas reivindicações. A mitologia gira em torno da origem da data que, no domínio comum, teria como palco um incêndio após manifestação de mulheres trabalhadoras em uma fábrica de tecidos no ano de 1857, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Em outra versão, o incêndio teria ocorrido em uma fábrica na Espanha, em 1908[3] (ainda que 8 de março de 1908 tenha sido um domingo, complicando a verossimilhança da versão).

Trata-se de uma “lavagem liberal” para transformar a data de marco contestatório em mais uma data apta à exploração comercial. Como afirma Eva Alterman Blay[4], ao contrário do chavão liberal de “salário igual para trabalho igual”, as reivindicações de mulheres participavam da “luta geral”, até porque seus pares homens progressistas julgavam que lutarem por pautas referentes a opressões específicas de gênero (e raça) “dividiria a classe”. Até hoje, certo sectarismo misógino e racista ronda as esquerdas, nas quais homens ditos “aliados” acusam pautas feministas e raciais de “identitarismos que ocultam a verdadeira luta de classes”, ignorando contribuições de feministas marxistas importantes, como Heleieth Saffioti[5], que explicam como opressões de gênero, raça e classe são indissociáveis no capitalismo.

Outra marxista proeminente, Rosa Luxemburgo[6], já observava que além do trabalho produtivo, mulheres das classes trabalhadoras realizam trabalho doméstico ou reprodutivo que, embora não crie mais-valia, gera e mantém a mão de obra que tudo produz no capitalismo. O trabalho reprodutivo abrange além das tarefas domésticas todo o trabalho de cuidado, desde a procriação, a criação, a sociabilidade e a esfera do amparo emocional que é relegado – em boa parte, sem remuneração ou remuneração precária – às mulheres. A suposta “função social de mulheres”, em sociedades regidas pela lógica capitalista, é vista como um “não trabalho”, e a ausência de remuneração o torna “desprezível” e tal status social reverbera às mulheres, que se tornam mais suscetíveis a diferentes formas de violências[7].

A “lavagem liberal” desejou ocultar as raízes do 8 de março na Revolução Russa e na luta de mulheres socialistas. Mulheres russas das classes trabalhadoras foram protagonistas no estopim da Revolução, comandando greves operárias e manifestações contra a escassez de alimentos em 8 de março de 1917[8]. Anos antes, em 1910, Clara Zetkin já havia proposto, durante a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas em Copenhague, que deveria existir uma data internacional dedicada às lutas de mulheres (só não propôs uma data específica, porque era intelectual e não vidente capaz de prever o desenrolar de fatos que culminou na Revolução Russa)[9].

Assim, em lugar de taxar pautas feministas de “identitárias”, caberia, para lembrar Rosa Luxemburgo[10], conhecer como a libertação do proletariado feminino é medida pelo avanço da sociedade em geral. E a todos, incluindo quem insiste em apagar a memória classista da data, “para não dizerem que não falamos de flores”, que tal trocarmos um punhado de bombons e flores por “Pão e Rosas”[11]? Expressão essa que retoma a garantia do direito à comida, como todas as condições necessárias à vida, assim como cultura, arte, lazer e as possibilidades de nos desenvolvermos plenamente enquanto mulheres. Que possamos superar uma visão idílica de data comemorativa e recuperemos o sentido de luta e enfrentamento que sugere o 8 de março. Mais que isso, que as conquistas sejam uma realidade e uma mudança perceptível para todas nós.

[1] Desafio ainda maior às mulheres transgêneros e travestis, ainda mais invisibilizadas que mulheres cisgênero.

[2] NODARI, S. Mulheres ainda são menos entrevistadas que homens nos telejornais de 8 de março. Sur le journalisme, About journalism, Sobre jornalismo, v. 11, n. 2, p. 62-75, 2022.

[3] Gonzalez (2010) apud Nodari (2022)

[4]BLAY, E. A. 8 de março: conquistas e controvérsias. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 601–607, 2001.

[5] SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Trabalho feminino e capitalismo. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais, v. 1, 1976.

[6]LUXEMBURGO, Rosa. El voto femenino y la lucha de clases. Asparkía: investigació feminista, p. 109-113, 1994.

[7]MEDEIROS, Priscilla. Expropriação em tempos de capitalismo: o trabalho reprodutivo e o impacto na vida das mulheres. Libertas, v. 23, n. 1, p. 205-227, 2023.

[8] OLIVEIRA, S. S.; ROTENBERG, L. 8 de março: dia internacional das mulheres. Trabalho e Cooperação, v.  15, n.1, p. 1-6, 2019.

[9] OLIVEIRA, S. S.; ROTENBERG, L. 8 de março: dia internacional das mulheres. Trabalho e Cooperação, v.  15, n.1, p. 1-6, 2019.

[10] LUXEMBURGO, Rosa. El voto femenino y la lucha de clases. Asparkía: investigació feminista, p. 109-113, 1994.

[11]Em 1911 trabalhadoras e trabalhadores do ramo têxtil dos EUA realizaram uma greve com o lema “Pão e Rosas” e esse se tornou um lema internacional de grupos de mulheres que lutam por seus direitos.


Fernanda Onuma é professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG Varginha e integrante do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Sociedade (PPGPS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero pela Não Intolerância (GENI), é integrante de cadeira coletiva junto ao Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Varginha-MG (CMDM). A docente também coordena o projeto “Escrevevivências femininas: traçando linhas em educação, direitos humanos e políticas públicas em Varginha-MG”, financiado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).

 


Cilene Margarete Pereira é doutora em Teoria e História Literária (UNICAMP), membro do Grupo de Pesquisas Gênero pela Não Intolerância (GENI) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), atuando no Projeto “Escrevevivências femininas: traçando linhas em educação, direitos humanos e políticas públicas em Varginha-MG”, desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas (ICSA/UNIFAL-MG).

 

 


Aline Lourenço de Oliveira é professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da UNIFAL-MG Varginha e integrante do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Sociedade (PPGPS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero pela Não Intolerância (GENI), a docente também atua na coordenação-adjunta do projeto “Escrevevivências femininas: traçando linhas em educação, direitos humanos e políticas públicas em Varginha-MG”, financiado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).