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O escritor antropófago, sem retoques

A melhor maneira de conhecer Oswald de Andrade é lendo sua obra. A segunda melhor maneira é percorrer as 286 páginas da fotobiografia O salão e a selva (1995), de Maria Eugênia Boaventura. O livro, que está a merecer reedição, documenta com dezenas de imagens a vida e a produção artística – além dos “escândalos matrimoniais”, na expressão de um personagem citado pela autora – daquele que foi o mais radical dos escritores modernistas. Além de pintor, embora não tenha persistido na carreira.

De um modo ou de outro, praticamente todas as questões culturais e políticas importantes da primeira metade do século XX perpassam a obra oswaldiana. Ele, por exemplo, farejou certeiramente o nazismo, quando os desavisados entusiastas do totalitarismo hitlerista não conseguiam entender o que significava a invasão da Polônia em 1939. Seu espírito cosmopolita deu-lhe uma profunda compreensão da marcha da história na Europa e no Brasil, impedindo que ele incorresse nas miopias ideológicas que embaçaram a visão de boa parte da intelectualidade brasileira da época. Enquanto foi poderoso capitalista, investiu carretas de dinheiro, a fundo perdido, em seus próprios livros e num projeto nacional de aprimoramento artístico e intelectual de que Semana de Arte Moderna, em 1922, foi o primeiro marco importante.

Nascido rico, muito rico, Oswald (ele detestava ser chamado de “Ôswald”) dilapidou uma das grandes fortunas de São Paulo. Sua família, além de fazendeira, era proprietária de enormes terrenos hoje ocupados por áreas nobres da capital paulista. Com Tarsila do Amaral, sua terceira mulher, chegou a morar durante vários anos em Paris – jamais em espeluncas, sempre frequentando os melhores hotéis e restaurantes da Europa. A crise econômica de 1929 trouxe o anúncio de uma ruína financeira que, nos últimos anos de vida, colocou o escritor às voltas com agiotas e obrigou-o a fazer vendas apressadas de propriedades que ainda lhe restavam, incluindo uma valiosa coleção de obras de arte. Oswald também fez seus filhos estudarem nos melhores colégios suíços, exceto os que deram o azar de nascer no tempo das vacas esquálidas.

Essa crônica biográfica pode ser encontrada, com a ironia oswaldiana e o natural viés de todo relato pessoal, nas memórias inacabadas do escritor, que levam o significativo título Sob as ordens de mamãe. O antigo menino mimado quase nunca deixou de se pautar por um estilo cortante em boa parte aprendido com Eça de Queirós, uma de suas leituras prediletas na juventude; estilo que ajuda a explicar seus rompimentos ressentidos com os principais companheiros modernistas – casos de Mário de Andrade e Paulo Prado –, especialmente depois da adesão de Oswald ao Partido Comunista, que também marcou uma inflexão decisiva em sua obra literária: tornou-se mais engajado, num sentido estritamente político, e menos criativo no plano artístico. Mas isso foi quando o principal dessa obra já estava pronto e acabado.

A grande contribuição de Oswald de Andrade para o Brasil foram seus romances (nunca assim chamados por ele) Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). Os poemas de Pau Brasil (1925) são um marco importantíssimo para a renovação da forma poética entre nós, mas se tornaram um tanto datados e hoje dificilmente podem ser lidos numa perspectiva que não seja histórica e/ou teórica; apenas alguns deles ainda conseguem interessar a leitores comuns, e nessa parte não se inclui a insossa paródia da “Canção do exílio” de que tanto gostam os formuladores de apostilas. “Erro de português”, “Vício da fala” e “O capoeira” precisam figurar em qualquer antologia decente de poetas brasileiros.

Memórias sentimentais é de uma voltagem estética nunca igualada, qualidade que resultou de doze anos em que foi reescrito repetida e obsessivamente. A narrativa é extremamente densa, tendo sido seu estilo obtido a partir de uma aplicação personalíssima de técnicas da pintura cubista e das “palavras em liberdade” do futurismo. As diversas estadas de Oswald na Europa, sobretudo o período em que formou com a pintora do Abaporu o casal “Tarsiwald”, proporcionaram-lhe um convívio intenso com o que havia de melhor na arte de vanguarda. Ele foi amigo de alguns dos pintores, músicos e escritores mais decisivos da arte moderna; comprou obras de Picasso, Fernand Léger, Juan Gris e vários outros. Quando voltava ao Brasil, aplicava-se a encorajar e ajudar jovens artistas, tendo influído nas obras de alguns deles, como Victor Brecheret e Carlos Drummond de Andrade.

Oswald foi também um dos mais notáveis teóricos da cultura brasileira. Seu Manifesto Antropófago (1929) é de uma atualidade impressionante, por enunciar o caminho mais inteligente e lúcido que alguém já propôs para nossas artes: a “devoração ritual” do que viesse de culturas mais desenvolvidas, resultante num produto genuinamente local, mas depurado daquele provincianismo inevitável nos artistas apegados em excesso à “cor local”. Apesar de seu espírito combativo, muitas vezes desconcertantemente bem-humorado e cunhado em frases tão lapidares quanto ofensivas, o escritor paulistano foi o mais legítimo continuador da reflexão proposta por Machado de Assis no famoso ensaio “Instinto de nacionalidade”. Serafim Ponte Grande, um dos romances mais engraçados da literatura brasileira, é o principal produto oswaldiano resultante da militância antropofágica, mas também podem ser considerados obras muito coincidentes com ela a “rapsódia” Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e o poema narrativo Cobra Norato (1931), do gaúcho Raul Bopp, obra-prima muito menos lida do que merece.

A fotobiografia de Maria Eugênia Boaventura é um trabalho, antes de tudo, honesto. Da admiração da autora pelo biografado não fica dúvida, já a partir da escolha do título: O salão e a selva seria o segundo volume das memórias de Oswald, anunciadas no mesmo ano em que ele publicou, pouco antes de morrer, Sob as ordens de mamãe (1954). Tudo indica que a oposição simbólica entre os salões da alta cultura e o modus vivendi selvagem sintetizaria o empenho do escritor em processar a primeira pela via de uma sensibilidade autenticamente nacional, figurada no estabelecimento, como marco histórico inicial de nossa história, da morte, em 1556, do clérigo português chamado Pero Fernandes de Sardinha, devorado na Bahia por uma tribo de caetés.

A autora, que leciona literatura na Unicamp, é fiel à radicalidade oswaldiana em vários aspectos. Um deles consiste em não idealizar seu personagem: se Oswald é retratado no seu perfil heroico e generoso – foi sempre gentil com suas mulheres, tendo contribuído significativamente para o aprimoramento artístico das duas “principais”, Tarsila e Pagu, e nunca negligenciou o papel de pai –, nenhuma passagem do livro esconde suas vacilações de caráter ou seus julgamentos injustos, ditados por raiva momentânea, como qualificar Villa-Lobos de “músico mais barulhento e vazio da América”. Resta, da leitura de O salão e a selva, uma imagem bastante completa e convincente do autor de algumas das obras mais contundentes de nossa literatura. Como pano de fundo, um esclarecedor painel da cultura e da política brasileiras na primeira metade do século XX.

Título: O Salão e a Selva
Autor: Maria Eugência Boaventura
Gênero: Biografias
Ano da edição: 1995
ISBN: 8526803425
Selo: Ex Libris & Unicamp

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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