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Quarenta anos depois de sua publicação, permanece praticamente ignorado pelos leitores e, o que é pior, pelos estudiosos da área, o romance No coração dos boatos, de Uilcon Pereira. O autor, paulista nascido em Tietê, morreu em 1996, sem ver sua obra ser levada a sério a não ser por meia dúzia de amigos e admiradores; ocorre que ela é o mais radical experimento da ficção brasileira no final do século XX; supera, nesse quesito, os “recordes” Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Catatau, de Paulo Leminski, e Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna, todos de 1975.

A publicação ocorreu na forma de uma trilogia: Outra inquisição (1982), Nonadas (1983) e Implosão do confessionário (1984). Esses volumes, hoje difíceis de encontrar, consistem na colagem de falas e trechos escritos coletados ao longo de sete anos (1975-1972) nas mais diversas fontes: dos clássicos da literatura universal a reportagens de jornal, ditados populares, canções e anedotas. Um prato-feito para bakhtinianos, mas não para voloshinovistas. O que confere unidade a todo esse material, cujo conjunto soa, à primeira vista, sem nenhum sentido, é a estruturação da enxurrada de citações por meio de um diálogo ininterrupto cujos participantes variam em número e identidade. Tudo é movente. O autor dizia que seu principal modelo foi o romance L’inquisitoire (1962), de Robert Pinget, mas também os estilemas literários são objeto de colagem em No coração dos boatos, de maneira que alguém poderia pensar, sem estar muito errado, que a matriz narrativa fosse o episódio do bordel, do Ulysses (1922), de Joyce. O francês Pinget, a propósito, foi um dos representantes do nouveau roman, ao lado de Michel Butor, Nathalie Sarraute e outros escritores franceses de meados do século XX.

Copiar sempre, não escrever nada de sua própria autoria. Essa ideia também foi copiada – de Gustave Flaubert, que em seu romance Bouvard e Pécuchet (1881) concebeu um par de personagens, os amigos que figuram no título, capazes não só de acreditar na “sabedoria” do século, mas também de tentar compendiá-la para uso próprio. O romance flaubertiano termina com um “sottisier”, ou dicionário de besteiras, que ficou inacabado mas documenta a intenção sarcástica autor: mostrar, por meio de um apanhado do senso comum, como as pessoas se deixavam enganar pelas maiores bobagens, desde que enunciadas por alguém supostamente investido da autoridade de as dizer. Ampliando o conceito, Uilcon Pereira reduziu a “nonadas” toda a conversa fiada do século que lhe coube viver, de modo que o “coração dos boatos” é também o coração das trevas (parodiando o título do romance de Joseph Conrad) da estupidez humana universal e onipresente. Ainda há o Pierre Menard, de Jorge Luis Borges, que pretendeu copiar o Quixote palavra por palavra – além de várias poéticas afins, todas devidamente canibalizadas pela estrutura e pela linguagem da obra uilconiana.

O escritor paulista viveu em Paris nos anos efervescentes da contestação político-cultural que culminou no Maio de 1968. Assistiu a aulas e conferências de Lévi-Straus, Sartre e Lacan, circulou pela atmosfera intelectual que daria seu balanço no pós-estruturalismo e na desconstrução, ainda hoje tidos como novidade por parte da intelectualidade brasileira. De volta ao Brasil, virou professor de cursinho, faliu como empresário de uma frota de táxis e terminou professor da UNESP em Assis, Marília e, finalmente, Araraquara. Sua obra, devido à extrema radicalidade, não encontrou muitos leitores e vem sendo a cada dia mais esquecida. Nada estranho num país que cultiva o facilitário, mitifica os demagogos, entroniza os pseudo-intelectuais vendáveis como pó solúvel.

Nada é por acaso na conversa infinita de Uilcon Pereira. Assim, a substituição da palavra livro pela equivalente processo, logo na epígrafe do primeiro volume, remete o projeto do autor à obra de Kafka, várias vezes citada por trechos “encaixados” no bate-papo dos inquisidores e inquiridos, que soma 400 e poucas páginas. Machado de Assis, como Freud e Shakespeare, é outro dos muitos autores “pirateados”: quando menos se espera, lá está um trecho do conto “Missa do galo” funcionando como fala do interrogado em determinada passagem. Tal estofo não exige apenas repertório da parte do leitor, exige também uma permanente prontidão, pois é imprevisível a direção tomada a cada passo da reescrita febril a que se entregou o autor enquanto dava forma a seu bizarro interrogatório. Uma das muitas maneiras de ler No coração dos boatos é como diário de leituras.

Não é dado ao leitor saber quem é (ou quem são) inquirido (s) e inquisidor (es). Logo se torna claro que a troca de turno entre os personagens que interrogam e os que são interrogados é uma das muitas movências do texto. Essa constante mudança dá uma aparência de indeterminação e faz parecer sem sentido o desenrolar do diálogo. A primeira evidência de que não existe um tema constante ou identificável é a troca de nome do personagem a respeito de quem se fala, mas esse nome consistirá sempre, numa série de variações em torno do prenome “Evaristo”: Evar von Chamisso, Evau-Kirê, Evarista Gyges, Evary Domingos Pinto Colchão e assim por diante. O interrogatório é conduzido de modo a subverter toda e qualquer estabilidade semântica ou formal.

Os temas do interrogatório, no entanto, acabam por deixar entrever uma paradoxal continuidade, pois a matéria das perguntas permite mapear certas preferências temáticas da parte da entidade intertextual que controla tudo – pois, afinal, existe um controle a orientar para qual direção se vira a “ordenha” da estrutura. Alguns exemplos dessa constância dentro da tremenda inconstância aparente são as menções aos atos de vigiar ou ser vigiado, a referência obsessiva aos olhos de “Evaristo”, ao transexualismo e a outras metamorfoses e a confluência do erotismo com práticas sexuais pervertidas e com a tortura. Em termos de referencial teórico, é fácil notar nessas recorrências a remissão a Foucault, a Bataille e ao Marquês de Sade.

Os “engates”, na sequência do interrogatório, assinalam um caminho em que se digladiam a necessidade de sentido que qualquer texto pressupõe e a inércia proliferante do processo de colagem, relação binária que começa a refazer a constante estabelecida no princípio do romance: é preciso, como mínima condição estruturante, que alguém pergunte e que alguém responda.

A terminologia um tanto arrevesada, difícil de evitar em se tratando desse “teatro às escuras” no qual se encena a saturação teórica do século XX e da própria teoria literária, pode dar a impressão de que No coração dos boatos é um livro muito chato. Bem ao contrário, porém, ele tem passagens hilariantes, às quais só chega, é claro, quem se dispuser a enfrentar a selva oscura do emaranhado intertextual. É difícil reduzir a uma resenha livro tão complexo, mas tem alguma utilidade dizer que ele apresenta um desfecho, no qual se explica toda a aparente barafunda em que consiste sua “outra inquisição”. Portanto, não deixa de ter alguma coisa de romance policial, sendo seu enigma afinal resolvido pela “implosão do confessionário”.

Por falar em polícia, a trilogia de Uilcon Pereira é um livro também emblemático da literatura brasileira escrita sob a ditadura militar. A própria ideia do interrogatório remete ao clima de paranoia instaurado no país pelo regime pós-64. A diferença é que, enquanto a maioria dos autores da época respondeu diretamente ao desafio proposto pelo autoritarismo, o escritor paulista colocou o problema da opressão política num plano bem mais elaborado. Entre todos os inventários feitos pela trilogia uilconiana, o inventário da cultura brasileira pós-ditadura não é um dos menos importantes.

(A quem interessar possa, neste link se pode ler uma descrição mais desenvolvida de No coração dos boatos: https://www.raco.cat/index.php/Abriu/article/view/316866?gathStatIcon=true)

Título: No coração dos boatos (Trilogia: Outra inquisição, Nonadas e Implosão do confessionário)
Autor: Uilcon Pereira
Gênero: Ficção
Ano da edição: 1982, 1983 e 1984, respectivamente

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).