Como um dos protagonistas de “Zezé e Dinim”, penúltimo dos 38 textos que compõem Inferno provisório (2016), Luiz Ruffato é dono de uma memória incomum. Ela é o principal ingrediente de sua poética narrativa que, posta em movimento com Histórias de remorsos e rancores, em 1998, logo tornou reconhecido o escritor nascido em Cataguases, como criador de uma das obras mais sólidas da ficção brasileira contemporânea. Eles eram muitos cavalos (2001) continua sendo o mais celebrado dos livros que compõem essa obra: o que teve mais edições e foi traduzido para maior número de idiomas.
Um pouco em função do sucesso instantâneo daquele romance, cujo título transforma em metáfora zoomórfica um verso de Cecília Meirelles, ainda não são muitos os estudiosos que entenderam ser Inferno provisório o título mais importante da obra ruffatiana. As qualidades que mais chamavam atenção em Eles eram muitos cavalos estão ainda melhor elaboradas na reunião de episódios inicialmente publicada como duas coletâneas de contos. Quando saiu o primeiro volume, Ivan Ângelo definiu Luiz Ruffato, em resenha no Jornal da Tarde, como “um senhor contista”. Antes disso, Ruffato havia publicado dois livros de poemas (um deles em Alfenas, onde trabalhou durante o ano de 1984 como editor do Jornal dos Lagos) e umas poucas narrativas curtas em periódicos e antologias.
Tudo é mais difícil de compreender, devido à mencionada elaboração, na estrutura e na linguagem de Inferno provisório: o entrelaçamento de tempos narrativos, a superposição de consciência e lembrança, o emprego de uma multiplicidade de recursos técnicos que, no livro de maior sucesso, ficava mais patente devido à extensão menor (140 páginas). Todos os procedimentos da poética narrativa ruffatiana foram aprimorados e tornados congeniais ao enredo na singular estruturação desse magnum opus. Agora também os personagens são muitos, mas não existe um princípio ordenador tão explícito – o espaço físico e psicológico da capital paulista, as 24 horas de um determinado dia “fechavam” numa unidade, ainda que problemática, a multinarrativa de Eles eram muitos cavalos; desta vez, o cimento parece consistir apenas no “visgo do passado”, de que se queixa o protagonista de “Vertigem” ao retornar a Cataguases, cenário da maioria das histórias que compõem o volume bem mais extenso (400 páginas).
Sendo a soma de cinco livros anteriores (das Histórias de remorsos e rancores até Domingos sem Deus, este de 2011), ele se constitui como obra cíclica cujas amarrações temporais não se explicitam. A sequência de episódios foi refundida de um modo que permite perceber a unidade entre eles, mas em meio a uma cronologia cheia de lacunas e movimentos de avanço e retrocesso. Está mais para Vidas secas (1938) do que para O tempo e o vento (1962), porém não facilita a vida do leitor com um tempo circular, como o romance de Graciliano Ramos, e, diferentemente da saga regional de Érico Verissimo, embaralha seu próprio caráter monumental num diagrama de temporalidades complexo a ponto de, em certas passagens, criar sérias dificuldades para o leitor.
É claro que resumir uma obra assim, também, não fácil. Alguns dos relatos apresentam enigmas que tornam insuficiente uma única leitura. Quanto ao macro-enredo, uma síntese bem parca seria a seguinte: ele narra, com repetições de personagens e situações dramáticas, um processo que se dá em dois lugares principais; o primeiro, a cidade de Cataguases; o segundo, várias outras localidades, com enorme destaque para São Paulo, principal destino dos habitantes do modesto (apesar de industrializado) município mineiro que conseguem emigrar, fugindo à falta de perspectivas profissionais e existenciais da província.
Migração de sentido reverso, pois as famílias estabelecidas em Cataguases e região têm origem na imigração italiana. Daí a primeira história, “Uma fábula”, falar da família constituída pelo pioneiro Micheletto que, casando-se com uma mocinha de sobrenome Bettio, ela com14 anos, estabelece em Rodeiro um sítio e se põe a desbravar seus arredores e a fabricar filhos. Chiara, precocemente obrigada a assumir o papel de adulta, vê-se “algemada nos cordões umbilicais de gravidezes sem fim” e termina enlouquecendo, presa num quarto escuro, e morrendo antes dos 40 anos. Seu marido é uma espécie de João Romão (de O cortiço) ainda mais rústico, capaz de “justiçar” a filha por ela ter-se deixado seduzir por um mascate. Essa crônica de violência doméstica e infelicidade sem remédio será replicada em vários outros episódios semelhantes, nos quais os maridos são brutamontes com as mentes entorpecidas pelo trabalho e pela ignorância, pais estúpidos e, em geral, adúlteros contumazes, além de viverem premidos por constantes dificuldades financeiras.
Essa comunidade perseguida pelas desgraças passa a gravitar em torno do Beco do Zé Pinto, conjunto de casinhas de aluguel cujos habitantes são, na maioria, famílias de operários das três ou quatro fábricas têxteis estabelecidas em Cataguases. Há uma certa estabilidade, ainda que relativa, em torno desse espaço urbano, mas vários núcleos familiares habitam outros bairros pobres da cidade. Onipresente, o rio Pomba comparece a todas as narrativas, ora como elemento a demarcar a época do ano, suas cheias invadindo casas humildes e desalojando as famílias, ora tragando algum suicida ou nadador desprevenido. Outra das muitas recorrências do livro é a localidade conhecida como Ilha, que abriga um prostíbulo aonde vão parar, algum dia, quase todos os personagens masculinos, sendo notável exceção o sonhador pipoqueiro Marlindo, que aparece aqui e ali, em várias histórias, igualmente a muitos outros personagens (Dona Zulmira, Zunga, Zé Bundinha, a ex-prostituta Bibica, a benzedeira Sá-Ana), como para sinalizar que, sob o aparente caos das vidas sem sentido, existe uma continuidade e um significado – ainda que, por absurdo, não atenue em nada o sofrimento daquela gente.
Pois o título do livro é Inferno provisório, e a provisoriedade consiste unicamente em que as vidas humanas são provisórias e restritas à luta pela sobrevivência. Do contrário, seria o inferno definitivo. Não há espaço para a felicidade nesses relatos – tanto que o leitor se espantará ao deparar com a rara passagem humorística, em “Era uma vez”, na qual um rapaz, ao ouvir o nome da cidade do protagonista, pergunta: “Cata o quê?”. Aplicando-se a ideia de inferno à própria narrativa, retornamos ao tema da memória: ela é o verdadeiro tormento infernal dos narradores, sendo que a escrita do livro, como deixa evidente o último texto (“Outra fábula”), consiste na rememoração de um tempo e de um lugar nos quais nunca poderia caber a “saudade hypocrita” daquele notório narrador de O Ateneu. Luiz Augusto, protagonista de “Outra fábula” e evidente projeção autobiográfica, vislumbra uma miragem de felicidade apenas aos 40 anos, enquanto se prepara para correr na São Silvestre, numa espécie de ato inaugural da nova vida que apenas poderia iniciar-se por meio do esquecimento daquele amontoado de histórias de que acaba de se livrar.
Assim, esta parca síntese de Inferno provisório deixa de fora muito do que importa: a exemplificação do tour de force implicado em sua estrutura narrativa, a menção a episódios particularmente notáveis da saga ruffatiana etc. Mas um deles, por sua exemplaridade, não podemos deixar de citar: é “A expiação”, no qual somente perto do desfecho conseguimos entender que o homem moribundo num hospital é o mesmo Badeco, menino preto criado “de favor” por um “padrinho” – muitos anos antes, este o humilhara em público e logo em seguida morrera num acidente interpretado pelas outras pessoas como ato de vingança. É um dos cumes do livro, e eles não são poucos.
A propósito das qualidades fazem dele a obra-prima do autor (mesmo contendo, como, por sinal, muitos dos grandes romances modernos, passagens pouco digeríveis), alguns aspectos não podem ser negligenciados. Se Eles eram muitos cavalos consistiu, para certos efeitos, num caderno de exercícios preparatórios do ficcionista, agora é que frutificou inteiramente aquela preparação. Isso se manifesta não apenas no uso aprimorado de um discurso em que se atropelam falas incompletas e lampejos de consciência, resultado da síntese pessoal que Ruffato faz da tradição poético-narrativa moderna, mas também nos encadeamentos assindéticos, velozes e cheios de acoplagens entre o dialeto regional (e.g.: “senjeiteza”) e criações neológicas como “trifurcava” e “maisoumenizando”.
Outra marca bastante original do estilo ruffatiano é a constante referência a produtos industriais populares, que ajuda a localizar temporalmente a ambientação da maioria dos episódios na década de 1970: Glostora, Van Ess, Mistura Fina, Coristina D, Vulcabrás 752, Iodex, Parquetina, por aí afora. E, porque é preciso terminar: podem-se pescar trechos de pura poesia em meio à prosa atropelada dos narradores – “As manhãs o ignoravam, brancazuis”; “Imperceptível, a noite apaga o lá fora”; “borrado pela névoa branca que cobria o mundo”; “Pássaros esculpem mangas maduras”.
Lido com a devida atenção (mas, atenção: às vezes, é uma leitura “braçal”), Inferno provisório vale pela melhor e mais extensa demonstração das qualidades que singularizam Luiz Ruffato entre a miríade dos ficcionistas em atividade no Brasil. Mesmo tendo o autor publicado depois dele outros romances, entre os quais O antigo futuro (2023) merece especial destaque, dificilmente outra obra sua concretizará de modo tão completo e bem logrado o projeto de testemunhar sobre a vida dos trabalhadores urbanos do século XX, personagens tão ausentes de nossa ficção, o mais das vezes produzida por escritores distantes do cotidiano da população pobre – ou, quando próximos a ele, tão longe de dominar os fundamentos da linguagem literária. Aí é que entra a memória superlativa de um ex-torneiro mecânico.
Título: Inferno Provisório
Autor: Luiz Ruffato
Gênero: Romance
Ano da edição: 2016
ISBN: 978-85-3592-793-1
Selo: Edição Econômica
Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).