Tiradentes e a representação dos heróis da nação

Mário Danieli Neto[1]

 

(Agora são tempos de ouro. Os de sangue vêm depois. Vêm algemas, vêm sentenças, vêm cordas e cadafalsos, na era de noventa e dois.)

(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência, Romance XII).

 

O episódio que ficou conhecido como Inconfidência mineira, insere-se na história e na produção historiográfica brasileira como um dos mais significativos acontecimentos que marcam o período derradeiro do regime colonial. Iniciada por volta do final de 1788, a conjuração foi desbaratada em março de 1789. Tratava-se, de início, de uma sublevação contra os impostos abusivos cobrados pela metrópole portuguesa, sendo que, a maior parte dos envolvidos devia quantias vultosas em tributos e contratos frente à Coroa de Portugal. Após a descoberta da revolta, denunciada às autoridades por um de seus envolvidos, procedeu-se a prisão dos implicados e extensos interrogatórios, cuja documentação pode ser lida nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, publicados em 11 volumes pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (2016). Encerradas as investigações e apurados os crimes cometidos pelos revoltosos, de acordo com as leis da época, em 19 de abril de 1792 foram lidas as sentenças com grande alarido por parte dos presentes no tribunal (réus, padres, militares, autoridades).  (MAXWELL, 2001, p.221).

No dia 21 de abril de 1792, cumpria-se a sentença imposta ao alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido em Vila Rica e adjacências pela alcunha de “o Tiradentes”.  O condenado, executado na forca, “com baraço e pregão”, conforme determinava a sentença exarada pelo Juiz Vasconcelos Coutinho, foi o único envolvido na sublevação que recebeu como punição a pena capital. Os demais envolvidos, excetuando-se dois que morreram no cárcere, obtiveram da rainha de Portugal, D. Maria I, a comutação de suas penas para o degredo em diferentes partes do império português. (Autos da Devassa, 2016, p.93). O alferes Tiradentes enfrentou onze interrogatórios desde a sua prisão em 1789 até sua condenação em 1792 (Autos da Devassa, 2016, p. XVII).

Alferes Joaquim José da Silva Xavier: “O Tiradentes” (1940), de José Wasth Rodrigues. Imagem: Reprodução.

Foi um longo caminho de apagamentos, reconstrução e afirmação da imagem de Tiradentes, de persona non grata aos olhos das autoridades luso-brasileiras do final do século XVIII a herói nacional nos anos iniciais da república.

Nas décadas seguintes aos acontecimentos, a revolta de Minas passou por um processo de esquecimento ou mesmo apagamento, por parte dos que exerciam o poder. Não obstante, fica evidente que houve grande preocupação da administração portuguesa em sufocar a revolta e punir exemplarmente os envolvidos. A volumosa documentação produzida por meio da devassa feita em seguida à denúncia da conspiração, prova que as autoridades coloniais não negligenciaram seus deveres perante a coroa.

A elevação de Tiradentes a herói nacional, foi consolidada nas décadas iniciais da república. Conforme explicou o historiador José Murilo de Carvalho, “heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva”. Heróis legitimam ou derrubam governos, por isso, compreende-se que todo regime político constitua seus heróis elevando-os ao panteão que busca dar identidade à nação (CARVALHO, 1995, p.55). Porém, a construção da representação do herói nacional não é algo que se faça de forma imediata e irrefletida. A escolha dos símbolos de uma nação tende a ser cuidadosa, buscando dar legitimidade e, de algum modo, “sacralizar” certos aspectos materiais ou imateriais que constituam uma identidade. Vale lembrar que, durante o período colonial, não havia, no Brasil, a percepção de uma unidade nacional ou mesmo de um sentimento de nacionalidade. Certamente, naquela época, seria bastante difícil pensar Tiradentes como um personagem que tivesse representatividade em todas as regiões da colônia. Mesmo após a independência em 1822, o sentido de nacionalidade foi construído muito lentamente, por meio de intensos embates políticos e conflitos sociais. Assim, Tiradentes foi alçado à condição de mártir da nação, somente quando o regime monárquico fora superado e a república nascente buscava definir seus símbolos e assentar sua legitimidade frente aos cidadãos.

A identificação do alferes Joaquim José com a causa republicana foi construída de pouco em pouco. Carvalho demonstra que os primeiros conflitos em torno da imagem do inconfidente como herói republicano deram-se ainda durante o final do império. Simbolicamente, Tiradentes “lutou”, mesmo após sua morte, com outros “candidatos” a heróis, destacando-se o próprio D. Pedro I, filho da rainha que condenou-o à forca, além de enfrentar durante os anos iniciais da república o assédio de próceres como Benjamim Constant, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, cuja proximidade histórica com a república recém instalada, dificultava a aceitação popular como heróis, visto que o regime republicano vivenciara até o início da década de 1920, uma série de revoltas no campo e nas grandes cidades. Ainda de acordo com José Murilo de Carvalho, outros mártires da luta pela liberdade poderiam suplantar o inconfidente, como, por exemplo, Frei Caneca, líder político pernambucano, ou no Sul, Bento Gonçalves. No entanto, Tiradentes identificava-se com os propósitos da república centrada no Rio de Janeiro e no Sudeste de modo mais amplo (CARVALHO, 1995, p. 67).

Tiradentes Esquartejado (1893), obra de Pedro Américo. Imagem: Reprodução

A simbologia religiosa também foi grandemente explorada nas representações de Tiradentes como herói da luta pela liberdade. Algumas narrativas do início da república, erigiram a figura de Joaquim José como um místico, apegado a fé e resignado com sua injusta condenação, mas ao mesmo tempo, convicto de que sua morte não seria em vão. Republicanos que tinham posturas anticlericais, contestaram tais abordagens. No entanto, se palavras escritas não bastassem para alçar Tiradentes ao panteão nacional, as imagens seriam ainda mais enfáticas. Na quase ausência de referências aos caracteres físicos do inconfidente, forjaram-se representações figurativas, aproximando o martírio sofrido por ele ao do Cristo crucificado. Como exemplo, pode-se ver tais simbolismos no famoso quadro de Pedro Américo, Tiradentes esquartejado, datado de 1893 (CARVALHO, 1995, p. 63).

Sobretudo, a Inconfidência mineira, entrou para a história do Brasil como uma revolução que não foi, pois que não houve enfrentamentos, nem mortos em combate, circunstância bastante distinta do ocorrido durante a Revolução de 1817 em Pernambuco, em que tombaram tanto revolucionários como representantes do poder estabelecido. Nesse sentido, a apropriação oficial da Inconfidência mineira tornou-se significativa para representar uma revolução que não pôs fim imediato à ordem vigente, mas cujos efeitos se fizeram sentir posteriormente, de maneira que não causou convulsões na estrutura social conservadora, sempre adepta da “boa revolução”, ou seja, aquela que não altera a estrutura social e pouco modifica o exercício de poder instituído, vide exemplos notórios, como 1930 e 1964. Aliás, foi em 1942, sob o governo ditatorial de Getúlio Vargas que foi inaugurado o Museu da Inconfidência, na praça que leva o nome daquele que é considerado seu principal mártir. Foi também durante os governos da ditadura militar que “além de herói nacional por excelência, Tiradentes é também considerado patrono da nação brasileira (Lei nº 4.897, de 1965)” (A CONSTRUÇÃO da memória nacional, 2010p.20).Por outro lado, o mártir da Inconfidência também foi exaltado por parte do pensamento de esquerda no Brasil, como figura de um “militante”, disposto a enfrentar uma investida anticolonial identificando-o com a luta contra o imperialismo numa visão “tanto por setores de esquerda mais reformadores, representados pelo trabalhismo quanto pelos militantes dos agrupamentos da luta armada” (MACEDO, 2016, p.344)

Dessa maneira, toda a efeméride pode ser uma boa oportunidade para se repensar não apenas o passado, mas principalmente, o tempo atual. Os heróis nacionais não são representações neutras, mas sim, construções simbólicas, cuja legitimidade é referendada pelo poder político instituído. Assim, a permanência desses simbolismos, demonstra a dificuldade em superar concepções de caráter conservador, principalmente no Brasil, cuja estrutura de poder busca mostrar uma sociedade ordeira, com cada qual sabendo exatamente em que lugar deve estar e como deve agir. No entanto, figuras como Tiradentes também tem o poder de subverter esse olhar conservador e por vezes, retrógrado. Considerado como herói de uma revolta contra um Estado violento e tirânico, talvez Joaquim José possa ser tratado como símbolo de tantos homens e mulheres martirizados diariamente pela pobreza, pela abusiva carga tributária incidente sobre a população mais humilde, pela não taxação de grandes fortunas, por um Estado muitas vezes lesivo aos cidadãos.

Nesse sentido, Tiradentes, enquanto personagem de envergadura nacional, pode representar bem mais do que apenas uma figura forjada pela história oficial. Como afirmou Maxwell, “em uma história particularmente carente de grandes homens, Joaquim José da Silva Xavier impõe-se como uma exceção” (MAXWELL, 2001, p.222).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A construção da memória nacional: os heróis no Panteão da Pátria. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010. (Série cadernos do museu; n. 10).

 AUTOS de devassa da Inconfidência Mineira. Introdução de Lafayette Luiz Doorgal de Andrada. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2016. 11 v. – (Coleção Minas de história e cultura; 2).

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.2ª. edição. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

MACEDO, André Luan Nunes. Heróis sepultados e heróis vivos: o que os livros didáticos têm a dizer sobre a fundação da nação? Expedições: Teoria da História & Historiografia. Ano 7, n.2. Agosto-dezembro de 2016.

MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. São Paulo, Paz e Terra, 2001.



[1] Professor Associado
de História do Brasil no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Doutor em Economia Aplicada (área de concentração História Econômica) pela Universidade Estadual de Campinas (2006), Mestre em História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2001); Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1995); especializado em Organização de arquivos pelo IEB-USP (1997). Atua nas seguintes áreas: História Geral e do Brasil; Historiografia, História Econômica. Áreas de pesquisa e interesse: Escravidão; escravidão urbana e escravidão industrial. Currículo Lattes.