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A volta ao dia em 80 mundos

Uma homenagem e uma inversão: eis a fórmula do título desse livro do argentino Julio Cortázar, celebrado autor do romance O jogo da amarelinha (1963) e dos contos de Bestiário (1951), pontos altos da vasta obra que transformou o escritor num quase popstar durante os anos 1970. Ambas, inversão e homenagem, remetem ao francês Jules Verne, autor de A volta ao mundo em 80 dias (1873), a cujos escritos Cortázar se refere muitas vezes ao longo dos textos que compõem a coletânea – tão surpreendente quanto sugere seu título.

Leitura fácil não é, pois a abundância de referências estonteia o leitor. À primeira vista, seria um livro de crônicas, algumas delas bastante longas. Há, porém, uma diversidade de embocaduras que acaba tornando-o exatamente o que seu autor se propôs, uma miscelânea que tem algo de almanaque; alguns textos podem mesmo ser considerados crônicas, outros são contos desengavetados (que não entrariam na lista dos melhores de Cortázar), uns são poemas e outros são fantasias textuais de fugidia classificação. O mesmo ocorre, por sinal, com as abundantes ilustrações, que variam de desenhos a gráficos e fotografias, em certas passagens abertamente referidas ao texto, mas em outras parecendo propor enigmas. Passa-se algo semelhante com as notas de rodapé: das provocativamente longas àquela que foi impressa de ponta-cabeça, alegando o autor que fez isso para poupar aos leitores mais sensíveis à leitura de uma descrição minuciosa do que o famoso assassino conhecido como Jack, o Estripador fez com sua última vítima.

A cultura de Cortázar era vastíssima. Ele nasceu na Bélgica, tendo vivido apenas até a juventude na Argentina – país habitado, na época, por uma classe média educada com esmero. O repertório amplo, somado à inquietude intelectual e estética do escritor, impregnou o livro de uma “efervescente vocação de jogo” que é a mesma do restante da obra cortazariana. Não se respeitam rótulos nem margens; aliás, as margens servem apenas para Cortázar ficar sempre do lado de fora.

Trafegando de Mallarmé, provavelmente o mais refinado poeta que já houve, às lutas de boxe, os textos de A volta ao dia em 80 mundos não apresentam uma sequência que se se possa considerar, de algum modo, expositiva. A ideia parece ter sido desnortear o leitor, mesmo. E o autor é irreverente a ponto de chamar o Criador de “passarinho mandão” e incluir um “porra!” no final da frase que menciona o Quixote (dá para apostar que seria “coño!” no original). Mas do que ele gosta mesmo é de jazz; vários de seus textos consistem na celebração desse estilo musical, e talvez aquele em que Cortázar mais infunde seu entusiasmo seja o que presta homenagem a Louis Armstrong, descrevendo o que foi uma apresentação do músico estadunidense em Paris.

A definição da voz de Armstrong contém o mesmo sopro de poesia que perpassa muitas passagens do livro:

(…) quando Louis canta a ordem estabelecida das coisas para, não por alguma razão

explicável, mas somente porque tem que parar enquanto Louis canta, e dessa boca que

antes inscrevia as bandeirolas de ouro cresce agora um mugido de cervo apaixonado, uma

queixa de antílope contra as estrelas, um murmúrio de abelhas na sesta das plantações (…)

Não é só uma empolgação retórica, o encadeamento alucinado das frases do jazz entrou na corrente sanguínea do estilo cortazariano. Ele escreve, frequentemente, como quem improvisa a um instrumento, e que se vire o leitor para acompanhar.

O escritor não se esquece de sua argentinidade. Embora ausente da pátria no momento em que produzia esses textos, ele não perde de vista os problemas da cultura platina. Atesta isso, por exemplo, sua interpretação meio sociológica de Carlos Gardel, de que temos aqui uma amostra:

O Gardel dos anos 20 contém e exprime o portenho trancado em seu pequeno mundo

satisfatório: a mágoa, a traição, a miséria não são ainda as armas com que o portenho e o

provinciano ressentidos e frustrados irão atacar a partir da década seguinte. Uma última

e precária pureza ainda o preserva do derretimento dos boleros e radionovelas. Gardel

não causa, em vida, a história que já se fez palpável com sua morte.

O segundo volume do livro começa com uma irônica discussão do happening, conceito muito em voga na época da primeira publicação dos textos (meados dos anos 1960). Pouco propenso e embarcar nos modismos pós-modernos – ainda que atento à exaustão do conceito moderno de arte –, o escritor ironiza propostas como o ato “artístico” que consistia em atravessar uma rua muitas vezes, nas duas direções, em obediência às sinalizações do semáforo. O proponente dessa “obra de arte” era um músico estadunidense (a que faltava, aparentemente, a verve pletórica do “cronópio” Louis Armstrong), assim como Phillip Corner, cujo “concerto” consistia em “destroçar um piano de cauda no meio de um palco e leiloar seus pedaços entre o público”. Não por acaso, Cortázar acrescenta, no rodapé, um comentário quase do mesmo tamanho do texto e o intitula “nota iracunda”. Estão fazendo falta, nos últimos tempos, escritores de tal calibre, capazes de ridicularizar o império da Bulxítia em que se vai convertendo a maior parte da cultura mundial. Ou será que eles não encontram mais onde publicar o que escrevem?

Um destaque do livro, por sua extensão, é o panegírico que Cortázar dedica ao romance Paradiso (1966), do cubano Lezama Lima. A publicação dessa obra era recente, o que pode explicar o possível exagero do panegirista; apesar de reconhecer que Lezama escrevia mal, considerando-se como padrão o espanhol culto, Cortázar atribui ao ilhéu caribenho uma tal soma de qualidades que é possível imaginar ter “convertido” muitos leitores à difícil tarefa de enfrentar Paradiso. Mas, não: o cartapácio continua, após mais de meio século, praticamente restrito aos pesquisadores profissionais e aos devotos da evolução ilimitada das formas literárias.

Qualquer amostragem de A volta ao dia em 80 mundos será bisonha. O livro é muito variado e tremendamente relegível. Terminemos, então, com um trecho exemplar das alturas a que podiam chegar o pensamento e o estilo de Cortázar:

A conduta lógica do homem tende sempre a defender a pessoa do sujeito, a parapeitar-se

ante a irrupção osmótica da realidade, por temor de confundir-se. Em compensação, veja

só, o poeta abre mão de se defender. Abre mão de conservar uma identidade no ato de

conhecer porque precisamente o sinal inconfundível (…) lhe é dado desde cedo pelo fato

de a cada passo sentir-se outro, de sair tão facilmente de si mesmo para ingressar nas

entidades que o absorvem, alienar-se no objeto que será cantado, a matéria física ou moral

cuja combustão lírica provocará o poema.

Título: A volta ao dia em 80 mundos
Autor: Julio Cortázar
Gênero: Contos
Ano da edição: 2008
ISBN-10: ‎852000637X
ISBN-13: 978-8520006375
Selo: Civilização Brasileira

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).