Desenlace da crise econômica: o Princípio da Demanda Efetiva em Kalecki e Keynes

Terça-feira, 26 de maio de 2020

Por Débora Lima (doutora em Economia pela UFU e professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UNIFAL-MG)

A compreensão da atual crise econômica, assim como a apresentação de um prognóstico certeiro do problema, exige o retorno às diferentes correntes de pensamento econômico. Essas distintas orientações teóricas respondem a um debate que aborda os diversos caminhos a serem percorridos para se chegar à recuperação da economia. Enquanto alguns economistas atribuem o dinamismo dos principais indicadores macroeconômicos à oferta, outros o fazem para a demanda.

No século XIX, o economista francês Jean Baptiste Say formulou um axioma que ficou conhecido com Lei de Say. De acordo com essa lei, as funções de oferta coincidem com as funções de demanda, de maneira que não haveria obstáculos ao equilíbrio geral (inclusive de pleno emprego) nas economias de livre mercado. A máxima atribuída à Lei de Say, “a oferta cria a sua própria demanda”, implica que as mercadorias produzidas serão sempre vendidas pelo simples fato de que a produção gera renda em magnitude suficiente para a sua própria realização no mercado. Entende-se, portanto, que o impulso à economia deve ocorrer por meio de incentivos ao aumento das condições de oferta.

De acordo com essa ideia, tão cara aos advogados da Lei de Say (os economistas clássicos e neoclássicos), não há possibilidade de crises de superprodução e a moeda funciona unicamente como um véu lubrificador das trocas. A economia analisada por Say e seus advogados é, portanto, uma economia primitiva de trocas reais. O capitalismo não funciona assim.

Kalecki e Keynes, ao recorrerem a Marx, não somente inverteram a lógica de causalidade da Lei de Say, como também apresentaram a inviabilidade dessa Lei para explicar a economia em que vivemos. Nesta economia, os agentes são guiados pelo amor ao dinheiro e não às mercadorias.

No início do século XX, Kalecki, por meio do Princípio da Demanda Efetiva, demonstrou que as decisões de gastos determinam a renda, e não o contrário. Sendo assim, os agentes (e o governo, principalmente) não podem determinar a sua própria renda, mas apenas quanto irão gastar[1]. Se houver redução dos gastos dos agentes como um todo, a economia será conduzida para uma situação de insuficiência de demanda efetiva, o que irá deprimir o emprego e a renda. Com essa alegação, o economista polonês atribuiu à demanda o papel dinâmico da economia, a despeito da oferta e da Lei de Say.

Essa concepção inovadora foi retomada por Keynes poucos anos depois. O economista inglês utilizou o circuito capitalista de Marx para argumentar que, diferentemente da economia primitiva de Say, cujo circuito é M–D–M (mercadoria, dinheiro, mercadoria), o capitalismo possui uma lógica diferente. Em função do amor ao dinheiro presente nessa economia, o circuito torna-se D–M–D’ (dinheiro – mercadoria – dinheiro + dinheiro) e é atribuída à moeda a função de reserva de valor, ou seja, a forma final de acumulação de riqueza dos agentes.

Nesse contexto, quando há preferência pela liquidez (e a riqueza se concentra na posse do dinheiro ou de títulos de alta liquidez e baixo risco), ocorre redução da demanda pelos bens de capital que geram emprego e renda. Essa escolha de alocação de portfólios (pela classe capitalista) depende dos rendimentos esperados dos ativos de capital, o que Keynes denominou “Eficiência Marginal do Capital” (EmgK), que é construída com base em expectativas formuladas diante de um cenário de incerteza. Assim, o desempenho das economias de mercado irá depender da tensão entre a EmgK e a segurança proporcionada pela posse do dinheiro.

Os ensinamentos de Kalecki e de Keynes nos mostram, portanto, que as medidas necessárias à redução dos efeitos da crise econômica devem dar impulso ao lado capaz de dinamizar a economia: a demanda. Essas medidas exigem o aumento dos gastos públicos, além da mobilização dos agentes privados (detentores do controle da riqueza social), guiados pelas expectativas com relação à venda das mercadorias que produzem.

Em que pese a insipiente complexidade das expectativas, o mercado deixado à sua lógica é incapaz de derrotar a tenebrosidade da ignorância com relação ao futuro. Diante da incerteza, o balizamento das expectativas é imprescindível em momentos de crise, quando se espera que a recuperação seja conduzida por elementos capazes de recuperar o nível de demanda.

O caminho escolhido pelo governo brasileiro diante da atual crise ignora esses ensinamentos, ao preconizar a retomada da oferta como dinamizadora da economia. Não há oferta sem demanda, tão pouco, emprego e renda. A busca pela retomada da oferta, a qualquer custo, por meio da abertura do comércio e das empresas, provocará o aumento da quantidade de pessoas infectadas pelo novo coronavírus, o que reduzirá ainda mais a demanda agregada. Medidas que sinalizam para o fim do isolamento social como forma de recuperação da oferta, colocam em risco a vida das pessoas e não são eficazes para a recuperação da atividade econômica.

 

Referências

BELLUZZO, L.G. DE M; ALMEIDA, J. S. G. Enriquecimento e Produção: Keynes e a Dupla Natureza do Capitalismo. IN: PAULA, L. F. e SICSÙ, J. (orgs). Macroeconomia Moderna: Keynes e a economia contemporânea. Rio de Janeiro, Campus, 247 – 257.

KALECKI, Michal. Teoria da dinâmica econômica. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os economistas).

[1] A existência do sistema bancário e do crédito permite que os gastos extrapolem a receita. O endividamento é o habitual do capitalismo, não o equilíbrio orçamentário.