Entregadores Antifascistas e Breque dos Apps: por que a luta dos trabalhadores de aplicativos é a luta de todos os trabalhadores?

Quarta-feira, 22 de julho de 2020


Por Vanessa Tavares Dias (doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ, professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UNIFAL-MG)

Foto: Pedro Strapasolas. Fonte: Brasil de Fato, 03 de Julho de 2020. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/07/03/entregadores-de-aplicativos-marcam-nova-greve-para-12-de-julho. Acesso 12 jul. 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um dos fenômenos que a pandemia do novo coronavírus permitiu descortinar foi a importância do trabalho dos entregadores de aplicativos. O isolamento social cumprido por parte da população mundo afora intensificou os pedidos de entregas em domicílio, realizadas em grande medida por esses trabalhadores.

Ainda que cumpram funções prioritárias, os entregadores de Apps constituem uma das frações mais vulneráveis da classe trabalhadora. No atual contexto da pandemia, eles atravessam cidades para levar mercadorias de primeira necessidade sem receber Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e sem qualquer auxílio-doença àqueles que possam porventura vir a ser contaminados. Além das condições precárias de trabalho, eles obtêm baixa remuneração e cumprem jornadas extenuantes. Em São Paulo, por exemplo, entregadores que despendem 09h24min diárias de trabalho, conseguem ao final do mês uma remuneração de R$ 936,00; se trabalhassem a jornada de 8h00, receberiam R$762,66. Já em Salvador, os entregadores de App recebem em média R$ 1.100,00 por mês. Numa jornada de 8h00, receberiam R$ 780,64 mensais[i]. Por conta disso, muitos entregadores trabalham 12 horas por dia ou mais, para alcançar uma renda que seja suficiente para a sua sobrevivência e a de sua família.

O trabalho por plataformas digitais ou aplicativos caracteriza-se pela realização de serviços mediados por algoritmos. A relação jurídica dos trabalhadores com as empresas de plataforma – iFood, Rappi, UberEats, Glovo, Loggi, para citar algumas -, não é estabelecida por vínculos empregatícios. Por conta disso, os entregadores estão destituídos de direitos trabalhistas básicos. Para justificar a falta de direitos, essas empresas estabelecem uma narrativa que promete aos trabalhadores “autoemprego”, ou seja, trabalho autônomo e flexibilidade para gerir o seu próprio tempo. No entanto, é a empresa-aplicativo que detém o poder para definir a remuneração, para distribuir os entregadores no tempo e no espaço, para controlar a produtividade e para desligá-los segundo critérios nem sempre claros, “tudo sob o aparente comando dos algoritmos”[ii]. Os trabalhadores, por sua vez, não têm qualquer gerência sobre o serviço: não podem captar clientes, não delimitam prazos de execução, não escolhem locais de trabalho, não estipulam a remuneração, além de viverem sob a ameaça de serem descontinuados a qualquer momento[iii].

Ao se referirem a seus empregados como “parceiros”, “clientes”, “colaboradores” e “empreendedores”, as empresas de aplicativo omitem propositadamente a palavra-chave que revela o que os entregadores realmente são: trabalhadores. Sua atividade é marcada por um tipo de exploração própria do capitalismo reestruturado. Realizam atividades just in time[iv], ou seja, mantêm-se on-line à disposição da empresa por longos períodos do dia, ao passo que só são remunerados por entrega realizada. Além de não receberem pagamento pelo tempo de espera, as empresas exigem deles a realização de tarefas não remuneradas, tais como carregar mercadorias pesadas e realizar compras em supermercados. As empresas-aplicativo também repassam para os entregadores os custos do empreendimento. Eles precisam adquirir instrumentos de trabalho, desde mochilas de armazenamento e celulares, até motos que, em alguns casos, devem ser adaptadas segundo critérios pré-definidos[v], sem oferecer para tanto qualquer auxílio para a sua compra ou manutenção. Sendo assim, os entregadores, além de cederem bens gratuitamente ao capital, também assumem os riscos do negócio, uma vez que precisam arcar com a reposição de instrumentos de trabalho deteriorados.

Os trabalhadores de aplicativo têm recebido grande destaque nos estudos da sociologia do trabalho. Para diferentes analistas, eles têm sido denominados com base em uma nova categoria: o precariado. Ainda que haja controvérsias quanto ao seu conteúdo significante[vi], é possível considerar, em linhas gerais, que o precariado é uma fração da classe trabalhadora sem direitos trabalhistas, sem contratos regulares ou regulamentados, sem segurança alguma quanto à sua remuneração, que tem grande dificuldade de se organizar em sindicatos e que são extremamente suscetíveis às ideologias neoliberais, especialmente as narrativas baseadas no “empreendedorismo”[vii]. Por essas razões, a sua mobilização em plena pandemia do novo coronavírus, além de inscrever um novo capítulo na história da luta dos trabalhadores, oferece novo ânimo às combalidas associações da classe trabalhadora, com dificuldades para recrutar suas bases no presente contexto de retração de direitos.

As manifestações dos trabalhadores de Apps não começaram, no país, durante a pandemia. Há registros de manifestações em 2018[viii] e 2019, destacando-se neste último ano a adesão dos motoristas das empresas de transporte UBER e 99 à greve mundial dos trabalhadores da categoria, convocada por meio do aplicativo multiplataforma Whatsapp. A paralisação teve como pauta, entre outras reivindicações, aumento da remuneração dos motoristas, aumento nas tarifas para os passageiros, redução da taxa cobrada pelas empresas e estabelecimento de locais regulamentados de estacionamento[ix]. Desde o início do confinamento, os meios de comunicação têm anunciado várias manifestações dos entregadores pelo país, como, por exemplo, o “buzinaço” que ocorreu no dia 20 de abril, em São Paulo. Na ocasião, os manifestantes protestaram contra a baixa remuneração oferecida pelas empresas de aplicativos, a falta de equipamentos de proteção e denunciavam os cancelamentos indevidos[x].

No entanto, os entregadores ganharam maior visibilidade quando participaram da manifestação em favor da democracia, que ocorreu em 07 de junho, em São Paulo. Sob a alcunha de Entregadores Antifascistas, o grupo formado por aproximadamente dez bike-entregadores foi saudado pelos demais manifestantes, parte deles vinculada a torcidas organizadas antifascistas[xi]. Já o Breque dos Apps aconteceu no dia 01 de julho em diferentes cidades do país. Os manifestantes mantiveram a pauta de reivindicações e levantaram a bandeira “não somos empreendedores”. No Rio de Janeiro, o Breque foi acompanhado por excessivo esquema policial, demonstrando, entre outros aspectos, que a rebeldia do precariado é perturbadora para hegemonia capitalista e pode abalar a ordem política dominante[xii].

Muitos aspectos característicos do trabalho plataformizado/uberizado não são restritos a trabalhadores de plataformas digitais ou Apps. De maneira semelhante, o trabalho por demanda já é, há muito tempo, uma realidade para professores(as) horistas de universidades privadas e para advogados(as) audiencistas, que recebem por audiência; a transferência de custos do empreendimento também ocorre para trabalhadores(as) de escritório que realizam atividades em home office, e precisam utilizar os seus próprios equipamentos[xiii]; sem contar a indistinção entre trabalho pago e não-pago característico do trabalho doméstico. No entanto, no capitalismo informatizado, a eficiência dos empreendimentos de plataforma, além de estar relacionada à ideologia da inexistência da figura do trabalhador, consegue congregar todas as transgressões aos direitos trabalhistas, deixando ilimitadas as jornadas de trabalho, deixando desprotegida a saúde e a vida dos trabalhadores e não garantindo a sua remuneração[xiv]. Esse “modelo de negócios” por aplicativos tem se espalhado pelos países do centro e da periferia do capitalismo e se generalizado como forma de controle e exploração da força de trabalho. Ao contrário do que se possa pensar, tal modelo não alcança apenas atividades que demandam baixa qualificação, como os serviços de entrega, transporte e limpeza. Empresas de plataforma já recrutam prestadores de serviços em engenharia, tradução e ensino, num verdadeiro mosaico de modalidades de trabalho[xv]. Por todos esses motivos, a luta dos entregadores de App é a luta de todos os trabalhadores e trabalhadoras contra a generalização do precariado e, consequentemente, contra a tragédia social que se aproxima: o ocaso definitivo da sociedade salarial, seguida de processo acelerado da precarização das condições de vida da classe trabalhadora em seu conjunto.

Para finalizar, ainda é possível objetar: se a recomendação das agências de saúde é pelo isolamento social, por que deveríamos defender uma greve com aglomeração em meio à pandemia? Além dos inúmeros motivos listados acima, há outro observado por Paulo Roberto Silva, o Gallo, coordenador do coletivo Entregadores Antifascistas e um dos organizadores do Breque dos Apps:

Ninguém nesse país que tem mais direito de estar na rua protestando que os entregadores, porque a gente já está na rua e aglomerado. Quando sai um pedido no restaurante, junta 20, 30, 40 entregadores para pegar os pedidos. Então, as pessoas que falam que não era pra estar na rua vão ter que lidar primeiro com a hipocrisia[xvi].

 


Referências:

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado?. Contracampo, Niterói, v. 39, n.1, p.12-26. Abr./Jul. 2020.

ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

BRASIL DE FATO. Entregadores de aplicativos marcam nova greve para 12 de julho. 03/06/2020. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2020/07/03/entregadores-de-aplicativos-marcam-nova-greve-para-12-de-julho>.  Acesso 12 jul. 2020.

CORREIA, Mariama. Entregadores antifascistas: “Não quero gado. Quero formar entregadores pensadores”. A Pública. Disponível em: <https://apublica.org/2020/06/entregadores-antifascistas-nao-quero-gado-quero-formar-entregadores-pensadores/>.  Acesso em: 16 jul. 2020.

FONTANA, Guilherme. Motoristas de aplicativos Uber e 99 fazem greve por lucros maiores. G1. 08/05/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/05/08/motoristas-de-aplicativos-uber-e-99-fazem-greve-por-lucros-maiores.ghtml>. Acesso em: 18 jul. 2020.

FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Revista do NIEP-Marx. v. 5 n. 8, 2017.

G1. Motociclistas de aplicativo protestam e bloqueiam vias do Centro e da Zona Sul de SP. 07/11/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/11/07/motociclistas-de-aplicativo-protestam-na-avenida-paulista.ghtml>. Acesso em: 18 jul. 2020.

HOLANDA, Bernardo Buarque de. Torcidas de Futebol: Força Estranha? Estado de São Paulo. 01/06/2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/torcidas-de-futebol-forca-estranha/?fbclid=IwAR3eYr_FgHKtldyyqdsoF9ZH0yrmYZT9QfVrGctB3YEKLcFfcw3u1rDrZ28>. Acesso em 18 jul. 2020.

HUWS, Ursula. A Formação do Cibertariado. Trabalho Virtual em um mundo real. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2017.

MAIA, Diegho. Motoboys fazem buzinaço em SP por melhor condição de trabalho na crise do coronavírus. Folha de São Paulo. 20/04/2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/motoboys-fazem-buzinaco-em-sp-por-melhor-condicao-de-trabalho-n a-cise-do-coronavirus.shtml>. Acesso em: 14 jul. 2020.

STANDING, Guy. O precariado. A nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

[i] ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020.

[ii] ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 33.

[iii] ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020.

[iv] ABÍLIO, 2020.

[v] ABÍLIO, 2020.

[vi] Cf. ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020; ANTUNES, 2018; BRAGA, 2013; STANDING, 2013.

[vii] Sobre a propensão da categoria a absorver discursos neoliberais, cf. FONTES, 2017, ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020; ABÍLIO, 2020.

[viii] Motociclistas de aplicativo protestam e bloqueiam vias do Centro e da Zona Sul de SP. G1. 07/11/2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/11/07/motociclistas-de-aplicativo-protestam-na-avenida-paulista.ghtml>. Acesso em: 18 jul. 2020.

[ix] FONTANA, G. Motoristas de aplicativos Uber e 99 fazem greve por lucros maiores. G1. 08/05/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/05/08/motoristas-de-aplicativos-uber-e-99-fazem-greve-por-lucros-maiores.ghtml>. Acesso em: 18 jul. 2020.
[x] MAIA, D. Motoboys fazem buzinaço em SP por melhor condição de trabalho na crise do coronavírus. Folha de São Paulo. 20/04/2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/motoboys-fazem-buzinaco-em-sp-por-melhor-condicao-de-trabalho-n a-cise-do-coronavirus.shtml>. Acesso em: 14 jul. 2020.

[xi] HOLANDA, B. B. de. Torcidas de Futebol: Força Estranha? Estado de São Paulo. 01/06/2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/torcidas-de-futebol-forca-estranha/?fbclid=IwAR3eYr_FgHKtldyyqdsoF9ZH0yrmYZT9QfVrGctB3YEKLcFfcw3u1rDrZ28>. Acesso em 18 jul. 2020.

[xii] Sobre a alteração do Estado como mantenedor da reprodução do trabalhador para a função de repressor do trabalhador precarizado, cf. Fontes (2017).

[xiii] HUWS, 2017.

[xiv] ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020.

[xv] ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020.

[xvi] CORREIA, M. Entregadores antifascistas: “Não quero gado. Quero formar entregadores pensadores”. A Pública. Disponível em: <https://apublica.org/2020/06/entregadores-antifascistas-nao-quero-gado-quero-formar-entregadores-pensadores/>.  Acesso em: 16 jul. 2020.