Minas Gerais: Subnotificação, baixa testagem e descoordenação entre Estado, municípios e União no enfrentamento à COVID-19

Sexta-feira, 19 de junho de 2020


Por Thiago Rodrigues Silame (doutor em Ciência Política pela UFMG e professor da UNIFAL-MG) e Helga do Nascimento de Almeida (doutora em Ciência Política pela UFMG e professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF)

No cenário da Pandemia de Coronavírus o estado de Minas Gerais (MG) tem sido para muitas pessoas como uma realidade incompreensível de ser lida. A pergunta que se faz é, como o segundo estado mais populoso do Brasil seria apenas o 12º em número absolutos de casos, 23.347 pessoas contaminadas[i], o 13º em número de mortes, 537 óbitos[ii], configurando-se, dessa forma, como a 2ª menor taxa de mortalidade/100 mil habitantes no país[iii]? Enquanto os estados vizinhos apresentam números gravíssimos. Qual o segredo Minas para esta suposta situação um pouco mais tranquila que a outra metade do Brasil?

A resposta nos parece ter 4 pontos importantes: 1) mudança na forma de registro dos casos; 2) subnotificação no número de sintomáticos e óbitos; 3) baixa  testagem; 4) manutenção de um isolamento mais robusto por parte da prefeitura da capital, em contrapartida à recomendação do afrouxamento do isolamento social vindas do governador de MG e do Presidente da República

Subnotificações e baixa testagem em Minas Gerais

Em primeiro lugar, mudanças foram observadas na forma como os dados do Boletim Epidemiológico (BE) produzidos pela Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES-MG) são apresentados. Do dia 18 de março a 13 de maio o BE trazia as seguintes informações em primeiro plano: total de casos confirmados (casos + óbitos), óbitos em investigação, óbitos descartados e óbitos confirmados. A partir do dia 14 de maio as informações em primeiro plano eram as seguintes: total de casos confirmados; casos em acompanhamento; casos recuperados, óbitos confirmados. Tais mudanças prejudicam a comparabilidade dos dados ao longo do tempo e pode camuflar uma possível subnotificação dos casos, prejudicando o planejamento de combate à epidemia. Para se ter ideia o total de casos suspeitos em 13 de maio era de 101.572[iv]. Este se reduz para 2131 (casos em acompanhamentos) no dia 14 de maio. Ou seja, ao que tudo indica, a opção do governo de MG foi minorar as taxas de suspeitas de COVID-19 pela mudança do padrão do BE.

Outro indício de subnotificação surge quando analisado o aumento de registro de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Segundo dados do BE da SES-MG do dia 04/06 registra um aumento de 683% do número de hospitalizações por SRAG em comparação ao mesmo período de 2019[v].

Em relação ao número de óbitos, o estudo UFU[vi] , afirma que, em comparação à média de 2017 a 2019, o ano de 2020 já registra um aumento de 648,61% no número de mortes por SRAG em Minas Gerais, 5,36% por pneumonia e 5,72% por insuficiência respiratória[vii]. A própria SES-MG[viii] admitiu que pode haver subnotificação. A secretaria estima que há 1 caso notificado para outros 10 casos não notificados.

Além do panorama problemático de subnotificação, a população mineira continua não sendo testada adequadamente para a COVID-19. Segundo monitoramento da UFV[ix] a partir dos dados oficiais da SES-MG, MG é o estado brasileiro que menos testa, são apenas 132,63 testes por 100.000 mil habitantes. A não prioridade de testagem massiva ficou clara quando o governador do estado, Zema, afirmou em entrevista para a CBN em 29 de maio que, “Testes não salvam vidas, são apenas termômetros”[x] [xi].

Coordenação e descoordenação

Além disso em MG tem acontecido um fenômeno problemático, a simultânea coordenação e descoordenação entre entes federados, em um momento crítico para os mineiros, o momento em que a doença começa a se interiorizar[xii]. Assim, ao mesmo tempo que o estado tem se alinhado ao governo federal, sendo que o último por vezes se coloca contrário às recomendações da OMS, os municípios mineiros, principalmente a capital do estado, tem se recusado a seguir as instruções postas pelo governador.

O fenômeno começa no topo, no momento em o presidente da república não constrói plano unificado para todo o território nacional, fazendo com que o SUS, estrutura pensada para agir considerando e distribuindo responsabilidades entre União, Estado e Municípios, fique sem diretriz clara de atuação. Além disso, decisões do executivo nacional, com fraca validade científica e jurídica, como o aconselhamento do isolamento vertical[xiii], do uso da hidroxicloroquina[xiv] [xv] e de eximir responsabilidades dos gestores públicos[xvi] trazem mais conflitos para o atual momento histórico. Então, na ausência de coordenação por parte do governo federal coube aos estados e municípios estabelecerem as medidas para o enfrentamento à COVID-19.

Em MG há alinhamento entre o governador Zema e o presidente deste as últimas eleições. Zema declarou apoio à Bolsonaro, mesmo antes do 1º turno, quando seu partido, Novo, tinha João Amoêdo como candidato próprio. O alinhamento prosseguiu durante a crise da Covid-19 e Zema encampou um movimento de afastamento dos demais governadores brasileiros, quando não assinou as cartas de cobrança de tomada de atitudes endereçados ao presidente (em 26 de março de 2020 e em 19 de abril de 2020), mantendo-se fiel à Jair Bolsonaro.

Além disso, foi posteriormente ao encontro de Zema com o presidente da república, em 09 de abril de 2020, que o governo mineiro começou a construir protocolo[xvii] para flexibilização do isolamento social e retomada das atividades econômicas, concretizado em 23 de abril, quando estudos afirmavam que MG estava ainda distante do pico da curva epidemiológica[xviii]. Essas medidas foram adotadas por inúmeras cidades do interior[xix] e da Região Metropolitana de Belo Horizonte[xx].

Ao mesmo tempo o prefeito de Belo Horizonte (BH), Alexandre Kalil, persistiu na indicação do isolamento social para a capital. E somente em 25 de Maio começou a adotar um lento protocolo de reabertura em três fases[xxi], organizado por decreto da prefeitura[xxii].

Nesse meio tempo embates públicos ocorreram entre governador e prefeito, deixando clara a descoordenação entre os dois entes federados. Zema afirmou que Kalil tem agido “fora da curva” e que o prefeito seria alguém que tem gritado e não feito nada. Kalil, em contrapartida, declarou que Zema teria feito uma “agressão gratuita” a ele[xxiii].

No entanto, em uma pandemia a tragicidade dos eventos não se esconde por muito tempo, e nesta semana BH registrou recorde nas taxas de ocupação de leitos de UTI, 81% dos leitos de UTI exclusivos para COVID[xxiv] e 83% dos leitos gerais de UTI, segundo Secretaria Municipal de Saúde de BH. Isso significa um aumento de 32% da ocupação no intervalo de 20 dias[xxv].  O Estado como um todo também se aproxima ao caos, dados mostram que das 14 macrorregiões do Estado[xxvi] sete apresentam ocupação de leitos de UTI  acima de 90%, sendo que no Triângulo Mineiro, no Leste, no Nordeste, Vale do Jequitinhonha e Vale do Aço a ocupação estava acima de 100%, o que caracteriza colapso do sistema de saúde. Sendo que ao todo a taxa de ocupação dos leitos de UTI em MG está em 73%. Lembrando que em Minas Gerais há visível sucateamento do sistema de saúde do interior e uma péssima distribuição de leitos de UTI, 92% dos municípios não possuem UTI[xxvii].

A atual situação alarmante que MG começa a vivenciar resultou em algo novíssimo, a primeira crítica pública de Zema ao Governo Bolsonaro, nesta, ocorrida em entrevista em 17 de junho, o governador mineiro observou algo que pelo menos 25 governadores brasileiros já haviam observado[xxviii], que uma “coordenação nacional teria ajudado muito o Brasil a lidar com a situação[…]. Caso o governo federal tivesse assumido essa frente, nós poderíamos estar em situação melhor em alguns estados[xxix]”.

De fato, a coordenação de ações entre governadores, prefeitos e União é central, já que a resultante da descoordenação mineira tem sangrado os maiores municípios, como BH. Além disso, os bons números publicizados por MG, pelo visto não passavam de uma miragem. A baixa testagem da população, a subnotificação deve acionar e o aumento da ocupação de leitos de UTI devem servir como um alarme, uma vez que a doença está migrando para o interior de MG[xxx] e a curva de contágio ainda está ascendente, as medidas de flexibilização do distanciamento social precisam ser repensadas em toda MG.  Mas será que agora Minas ficará consciente?

 


[i] Levantamento realizado pelo site https://covid19br.wcota.me/, de pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa sob coordenação do pesquisador Dr. Wesley Costa, a partir de dados das secretarias de saúde estaduais. Acesso em 17/06/2020.

[ii] Dados extraídos de  https://covid19br.wcota.me/  Acesso em: 17/06/2020.

[iii] Dados extraídos de  https://covid19br.wcota.me/  Acesso em: 17/06/2020.

[iv] Era considerado todo indivíduo com quadro respiratório agudo, notificado pelo serviço de saúde com suspeita de infecção pelo SARS-COV-2).

[v] Dados extraídos de  https://covid19br.wcota.me/  Acesso em: 17/06/2020.

[vi] Ver o trabalho dos pesquisadores em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Uberlândia, publicado no dia 23 de maio. ALVES, Thiago Henrique Evangelista et al. Underreporting of death by COVID-19 in Brazil’s second most populous state. medRxiv, 2020.

[vii] Os dados analisados pelos autores tem como fonte bases de dados do Ministério da Saúde, entre elas o Sistemas de Informação por Mortalidade e o Sistema de informação de Agravo de Notificação.

[viii] Coletiva do secretário de Saúde, Carlos Eduardo Amaral e do subsecretário de Vigilância em Saúde, Dario Ramalho, Imagens da Rede Minas, 25/05/2020. Acesso em 04/06/2020

https://www.youtube.com/watch?v=AIQlNx3ieOU

[ix] Dados extraídos de  https://covid19br.wcota.me/  Acesso em: 17/06/2020.

[x] Testagem para a COVID-19 é lenta em todo o estado. Jornal Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/29/interna_gerais,1151762/testagem-para-a-covid-19-e-lenta-em-todo-o-estado-veja-os-numeros.shtml Acesso em: 04/06/2020

[xi] A testagem é medida importante para o manejo e controle da doença, conforme foi observado na Coréia do Sul e Alemanha.

[xii] Veja como a COVID-19 se espalhou por MG e chegou a cidades sem UTI. https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/27/interna_gerais,1150897/veja-como-a-covid-19-se-espalhou-por-mg-e-chegou-a-cidades-sem-uti.shtml Acesso em: 05/06/2020

[xiii] A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza a adoção de medidas de isolamento social horizontal e de restrição de circulação das pessoas como a melhor maneira de diminuir o ritmo de contágio da doença evitando com que os sistemas de saúde fiquem sobrecarregados. Tal medida mostrou ser a mais eficiente para se controlar a doença enquanto não houver vacina e/ou tratamento para a doença.

[xiv] O protocolo foi expedido no dia 20 de maio de 2020 e não conta com assinatura do Ministro da Saúde.

[xv] Estudos recentes não observaram benefícios do uso de tal medicamento para o tratamento da COVID-19 e ainda apontam para riscos cardíacos. Ver Geleris et. al. 2020. Disponível em

https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2012410?query=main_nav_lg. Acesso em 04/06/2020.
Ver Rosemberg et. al. (2020). Disponível em https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2766117. Acesso em 04/06/2020.

[xvi] A MP 966, que visava eximir de responsabilidade gestores públicos por ações relacionadas ao enfrentamento à pandemia. O STF, provocado por partidos da oposição limitou, o alcance da MP ressaltando que as ações dos gestores públicos devem seguir critérios técnicos e científicos. 

https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/05/21/maioria-do-stf-vota-para-reduzir-alcance-de-mp-que-exime-agentes-publicos-de-responsabilidade-por-erros.htm. Acesso em 04/06/2020.

[xvii] Trata-se do Programa Minas Consciente. Dos 853 municípios mineiros, 110 aderiram ao programa até o dia 04 de junho alcançando cerca de 15% da população.

[xviii] https://painel.covidradar.org.br/#/

[xix]https://www.mg.gov.br/sites/default/files/paginas/imagens/minasconsciente/cta_-_municipios_que_aderiram_ao_minas_consciente_v11.pdf. Acesso em 04/06/2020.

https://domtotal.com/noticia/1447068/2020/05/veja-o-que-reabre-no-comercio-horarios-e-regras/. Acesso em 04/06/2020.

[xx] Terceira maior região metropolitana do país. Engloba 34 municípios alcançando uma população de 5 milhões de habitantes, ou seja, 25% da população do Estado. Informações disponíveis em:http://www.agenciarmbh.mg.gov.br/institucional/rmbh-e-colar-metropolitano/. Acesso em 05/06/2020.

[xxi] As fases foram dividas em: Fase Controle – Reabertura Fase 1 – Reabertura Fase 2. https://prefeitura.pbh.gov.br/reabertura-de-atividades. Acesso em: 05/06/2020

[xxii] Decreto nº 17.361, de 22 de maio de 2020 e pelo Decreto nº 17.328

[xxiii] https://www.otempo.com.br/politica/zema-sobre-kalil-tem-alguem-gritando-e-fazendo-quase-nada-1.2340166https://www.otempo.com.br/politica/prefeito-kalil-rebate-governador-zema-decidido-so-a-nao-decidir-1.2340709. Acesso em: 06/06/2020

[xxiv] Boletim Epidemiológico e Assistencial. Covid-19 Nº40/2020 – 16/06/2020. Secretaria Municipal de Saúde. Prefeitura de Belo Horizonte.

[xxv] Em 25 de maio de 2020, primeiro dia de funcionamento parcial do comércio de Belo Horizonte, a taxa de ocupação de leitos era de 48%, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.

[xxvi] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/06/16/metade-das-regioes-de-minas-estao-com-mais-de-90percent-dos-leitos-de-uti-ocupados.ghtml. Acesso em: 17/06/2020.

[xxvii] RODRIGUES, Jairo. Leitos de UTI por município – Minas Gerais. 2020. UFOP

[xxviii] Romeu Zema (Novo), governador de Minas Gerais, e Marcos Rocha (PSL), governador de Rondônia, eram os únicos que permaneciam completamente alinhados à Bolsonaro.

[xxix] https://alemdofato.uai.com.br/politica/zema-abandona-cautela-e-critica-conducao-da-crise-do-coronavirus-feita-por-jair-bolsonaro/ Acesso em: 17/06/2020

[xxx] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/06/03/interna_gerais,1153136/covid-19-se-propaga-quase-tres-vezes-mais-no-interior-de-mg-que-em-bh.shtml. Acesso em: 04/06/2020

 

* Publicado originalmente no jornal Estadão em 18 de junho de 2020, neste link, o artigo faz parte do projeto em parceria com a ABCP organizado pela professora Luciana Santana (Ufal)  intitulado: Os governos estaduais e as ações de enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil. Uma versão anterior foi publicada no site da ABCP em 08/06/2020 no seguinte link: https://cienciapolitica.org.br/noticias/2020/06/especial-abcp-governos-estaduais-e-acoes-enfrentamento